sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

O veludo dos sonhos

por Wagner Hilário

Dizem que quando era filhote, caiu da laje e bateu a cabeça. Sobreviveu por um milagre, mas houve sequelas: tornou-se epiléptico. Era um jovem hiperativo, corria enlouquecidamente atrás dos carros dos namorados de Leila. A moça não podia deixar o portão aberto nessas ocasiões. Ao ouvir a partida do carro, ele se pirulitava até onde o fôlego alcançasse. Ia longe, atrás do automóvel.

Quando Leila o escolheu, Tob batalhava contra os irmãos por uma das tetas da mãe. Leila não sabia da queda da laje. A não ser as orelhas endurecidas pros lados, em vez de pra cima, como uma asa-delta, não havia indícios da avaria.

Um vira-lata descendente de pastor. Adulto, era forte e maior do que a média dos cachorros sem raça. Era amarelo-ouro em quase toda a cara, na barriga, na parte posterior das costas e no rabo. No dorso, era levemente preto (se é que algo pode ser levemente preto).

Como costuma ocorrer, a menina escolheu o cão, mas seu pai, seu Lúcio, era quem cuidava, quem o alimentava. Tob então o escolheu para dono, somente a ele, mais ninguém. Mas a desobediência congênita, mais a epilepsia e a dermatite úmida (mais essa) somadas à impaciência de seu Lúcio entornaram o caldo daquele quase amor entre homem e bicho.

Seu Lúcio se estorvava com a história de ter de regular sua rotina com os horários dos remédios do cão e de limpar as fezes que impregnavam o azulejo claro do quintal. Gostava mesmo era de curtir a aposentadoria na frente da tevê. É verdade que dona Isadora o ajudava, mas nenhum dos dois dispunha de disposição pra levá-lo pra passear, pra dar carinho, atenção.

– Eu não, Leila – gritava seu Lúcio, menos por irritação do que pelos problemas de audição. – Cê é que tem de fazer isso. A sua mãe diz que eu maltrato o cachorro, mas ela não faz nada também, nem você. – Falava como raramente; era sujeito de poucas palavras. – Por que ocê não leva ele pra passear?

Leila levava no começo, mas depois que passou a estudar e trabalhar sacrificou o tempo de Tob. Seu Lúcio até tentou algumas vezes, mas apesar dos problemas, o cão era forte pra ele: qualquer cadela no cio no caminho era um enorme risco ao magro seu Lúcio.

Então, o alegre Tob da infância virou um adulto triste, embora jamais agressivo. Passava a maior parte do dia dentro da casinha. A vitalidade da juventude que o fazia subir as escadas do sobrado e saltar na cama de Leila logo pela manhã se esvaíra. A epilepsia tirava dele os reflexos. Corria desengonçado, sem aerodinâmica, apesar da asa-delta. Pior do que isso, só a dermatite: o fedor de pelo e couro molhado o afastava dos já escassos carinhos.

O tempo urgiu, e Leila de menina passou a moça universitária que passou a mulher mãe e esposa. Deixou a casa dos pais e o fedido Tob. O certo é que o cão tinha mais de dez anos quando sumiu da casa de seu Lúcio. Teve ainda a oportunidade de conhecer o filho de Leila, o único que àquela altura o acariciava, ao menos até algum adulto se dar conta da carinhosa peraltice e o afastar do mau cheiro e das chagas de Tob.

Numa das visitas de fim de semana à casa materna, Leila deu conta da ausência de Tob, o quintal não tinha merda alguma, nem urina e o cheiro de couro e pelo molhado tinham desaparecido.

– Mãe, cadê o Tob?

– Ah! Seu pai diz que ele fugiu. Como, eu não sei. Depois de velho, o Tob não saía da porta de casa. Impossível ter fugido. Tem gente na rua que viu seu pai colocar o bicho dentro do carro. Tem até gente que viu o cachorro lá pro lado do matagal. Fui atrás, mai nada.

– Ah, mãe! Não acredito nisso... Meu pai tentou tratá-lo de tudo quanto foi jeito, não faria isso – disse Leila ao marido, que olhava condoído o quintal... Lucas, o filho do casal, brincava no chiqueirinho.

Tob adorava passear de carro. Fazer com que entrasse no automóvel era fácil. Conhecia tão bem o barulho do carro que a um quarteirão de distância seria capaz de identificá-lo e latir pelo retorno do dono. Era arriscado acusar seu Lúcio, embora sua frieza dessa margem pros boatos da vizinhança. Não lamentava nem parecia feliz com o sumiço do cachorro. Fosse lá o que sentisse, sentia em silêncio.

O fato é que ninguém teve coragem de perguntar ao velho se ele havia ou não jogado o cachorro doente na rua.

Num Sábado de outono, no entanto, seu Lúcio acordou às seis da manhã, tomou banho, colocou a sua bota bege antiquada e manchada de tinta de parede, uma camisa quadriculada e uma calça jeans com as barras dobradas mostrando as canelas. Desceu, preparou o café e encheu as jarras. Na verde, café com açúcar; na vermelha, sem. Como sempre.

Pela porta da cozinha, a luz do sol recém-nascido passava brilhante, iluminando o cômodo. Seu Lúcio apanhou uma sacola de feira, onde colocava os pães e frios que comprava. Passou pela porta da cozinha e apontou no corredor que daria no portão. Banhado pela luz da manhã, ele divisou Tob correndo no corredor; o corpo coberto de um pelo lustroso, quase camurça, limpo e belo como nunca. Ele estava alegre, feito filhote...

Seu Lúcio abriu os olhos, com a voz alta que vinha do rádio-relógio marcando seis da manhã e o despertando do sono. Cumpriu o ritual diário: banho, roupas, café, padaria, mas agora sem encontrar Tob no quintal.

Mais tarde, à mesa:

– Tive um sonho bonito – disse a Isadora.

– Que sonho?

– Sonhei com Tob.

– É? E aí?

– Ele corria pelo quintal, aí no corredorzinho. Não parecia doente. O pelo era lindo e brilhava no sol. Eu nem queria acordar.

Sob o olhar desconfiado de Isadora, tomou um gole do café.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Escusas

Peço desculpas pelos dois dias (segunda e quarta-feira) sem postagem e pelo atraso na postagem da última sexta. O atraso foi fruto de problemas com a Internet, mas a ausência de postagens se deveu a uma certa negligência carnavalesca que, prometo, não se repetirá nem nos próximos carnavais.


Para manter uma certa ordem, informo que o próximo texto será postado na sexta-feira e será uma prosa. Conto com a compreensão de todos.


Att., Wagner Hilário.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Prece

por Fernando Pessoa

Senhor, a noite veio e a alma é vil.
Tanta foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos hoje, no silêncio hostil,
o mar universal e a saudade.

Mas a chama, que a vida em nós criou,
se ainda há vida ainda não é finda.
O frio morto em cinzas a ocultou:
a mão do vento pode erguê-la ainda.

Dá o sopro, a aragem – ou desgraça ou ânsia –,
com que a chama do esforço se remoça,
e outra vez conquistemos a distância –
do mar ou outra, mas que seja nossa!

Poema extraído do livro Mensagem, edição de 1999, da Companhia das Letras.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

O Possuído

por Wagner Hilário

Aos olhos da maioria, e também aos olhos de muitos dos seus entes nem tão queridos assim, Zé é um Zé Ninguém. Não preside nenhuma multinacional, não enriqueceu nem por bem nem por mal e tão-pouco foi um famoso jogador de futebol antes de se entregar ao vício. Se o tivesse feito, sua história talvez fosse outra: a beberrice lhe seria perdoada e encontrariam em sua infância uma razão para o adulto irresponsável que se tornara. O fato é que trabalha como vendedor de imóveis quase a vida toda numa imobiliária vagabunda, mais para pagar a birita do fim do dia do que para pagar o aluguel; mais para desfrutar da companhia dos amigos etílicos do que para assegurar as três refeições diárias.

– Que história tem esse pra contar? É um zero à esquerda – diziam os últimos exemplares de uma espécie humana em extinção: as senhoras-do-parapeito.

Mas ele não pensa assim, é óbvio. Não chega a se orgulhar da vida que leva, mas vê nela algo bíblico, talvez pelas precárias e questionáveis associações que faz entre as parábolas da Sagrada Escritura e sua conduta... Mas que diabo é isso? – você deve se perguntar. O cachaceiro lê a Bíblia? Sim. Lê e acredita piamente em tudo o que está escrito. Fazer o que manda o texto são outros quinhentos, mas cobrar dos outros, é com ele mesmo. Serviria para eclesiástico. Seria, no entanto, incapaz de cometer alguns tipos de pecados, como usar a Bíblia para engabelar a boa-fé das pessoas. Aliás, esse pecado é o que mais o incomoda.

Por isso, de uma passagem, não da Bíblia, mas de sua própria vida, ele se orgulha mais. Em seu repertório de histórias, das quais em regra ele é o herói, esta é uma das poucas verdadeiras, mesmo que isso pouco importe. Afinal, em balcão de bar a veracidade dos causos não significa nada se comparada com a excitação que proporcionam.

Num dia modorrento, em que o sol mais que aquece, derrete até telhado de templos, Zé voltava da imobiliária com o saco na lua da ociosidade que lhe tomara o dia todo. “A crise, a crise, a crise... Vou tomar uma.” Pra quem gosta, qualquer desculpa vale, imagine o estouro dos derivativos. Parou primeiro no boteco que ficava em frente à imobiliária, tomou uma com limão e depois emendou uma cervejinha pra balancear. Com as bochechas vermelhas de alegria e a boca cheia de coragem, seguiu a noite (que ainda era dia por causa do horário de verão), disposto a parar no bar que ficava a um quarteirão de seu apê.

A poucos metros do bar, porém, Zé ouviu a voz de Deus (nesse ponto, eu acredito que haja um pouco de ficção no relato do herói, que aqui replico à minha maneira) vir de uma dessas franquias da fé, que trazem na fachada nomes grandiosos, etéreos, e que trazem dentro louvações, exorcismos e aparelhos que aceitam cartões de crédito e débito das mais diversas bandeiras. Zé sabia que ali dentro ele tinha uma missão a cumprir. Iluminado pelo álcool, entrou no templo.

Chegou bem na hora do exorcismo, sentou-se em um dos poucos assentos vazios e ficou observando. Era uma moça, sacolejava sob a influência do demo; revirava o zoio; difamava o público; alguns se horrorizavam com os impropérios, outros vestiam a carapuça e uns reconheciam que o espírito não dizia nada com nada. Mas isso durou apenas alguns segundos, embora parecesse uma eternidade aos presentes. Durou até que a mão milagrosa do pastor finalmente arrebatou o infeliz do corpo da jovem.

A moça, amparada por seu “salvador”, foi levada até os assentos da frente, a no máximo dois metros de Zé, que pensou: “vou ficar de olho nela”. Foram mais de dois minutos fitando-a sem pestanejar (exagero concedido ao herói). Nesse meio-tempo (ele garante) ela percebeu que era observada e olhou umas cinco vezes para ele completamente sem graça, cara de quem foi pega com a boca na botija.

– Alguém que recebe o coisa-ruim não recupera assim, né não? – contava-nos, cheio de razão.

– Não tem como! – respondíamos, catedráticos no assunto.

Mas ele ainda não havia realizado o grande feito. Voltemos ao templo...

Convencido de que a moça era mais atriz do que crente, voltou sua zonza atenção para o discurso do pastor:

– Porque essa dor, senhores, esse diabo, que com muito custo a gente arranca das pessoas de bem como essa moça, é o responsável pelas maldades do mundo, pelas maldades que cometemos ao longo do caminho, quando estamos distantes de Jesus e perto do mundo mundano... Eu mesmo já fiz muita coisa errada: já fui maconheiro, já fui drogado, já roubei, já passei droga... Mas hoje... hoje eu posso dizer que...

Antes que o pastor pudesse completar, Zé foi impelido por força maior, força que pode ser atribuída a uma porção de fatores, mas que na minha visão de narrador (embora pouco onisciente), veio da sua natureza destemperada e inconsequente. Ergueu-se em meio aos fiéis e disparou diante de uma plateia estupefata, incrédula depois e indignada mais tarde...

– Hoje, pastor, hoje o senhor é estelionatário.

As palavras lhe saíram tortas, como era de se esperar de um bêbado, mas a condição atlética demonstrada ao correr enviesado em meio aos fiéis deixando os seguranças para trás surpreendeu a ele próprio. Foi por pouco que ele escapou. Quando os seguranças se aproximavam, Zé alcançou o bar. Os brutamontes se intimidaram com a grande quantidade de beberrões no boteco. Acharam que não valia a pena entrar lá e causar tumulto maior. No íntimo, talvez até concordassem com o insulto do Zé.

Uns trinta minutos depois, quando conseguiu recobrar o fôlego, ele nos contou o que ocorrera. A princípio ficamos indignados. Pensamos em ir ao templo dar um jeito nos seguranças, mas ele nos convenceu que não era prudente. Tomamos mais umas; brindamos o Zé.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Serenata

por César Magalhães Borges

Sei que o sol
que agora parte,
fez a sua parte,
repartiu-se em luz

Sei que o céu,
neste fim de tarde,
fez a sua parte,
repartiu-se azul

Peço que a noite
mire-se no dia,
inche-se de lua
e faça adormecer

Peço que os sonhos,
pela madrugada,
gestem outros sóis
e renasçam dias
vestidos de azul...

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Separação

por Vinícius de Moraes

Voltou-se e mirou-a como se fosse pela última vez, como quem repete um gesto imemorialmente irremediável. No íntimo, preferia não tê-lo feito; mas ao chegar à porta sentiu que nada poderia evitar a reincidência daquela cena tantas vezes contada na história do amor, que é a história do mundo. Ela o olhava com um olhar intenso, onde existia uma incompreensão e um anelo, como a pedir-lhe, ao mesmo tempo, que não fosse e que não deixasse de ir, por isso que era tudo impossível entre eles.

Viu-a assim por um lapso, em sua beleza morena, real mas já se distanciando na penumbra ambiente que era para ele como a luz da memória. Quis emprestar tom natural ao olhar que lhe dava, mas em vão, pois sentia todo o seu ser evaporar-se em direção a ela. Mais tarde lembrar-se-ia não recordar nenhuma cor naquele instante de separação, apesar da lâmpada rosa que sabia estar acesa. Lembrar-se-ia haver-se dito que a ausência de cores é completa em todos os instantes de separação.

Seus olhares fulguraram por um instante um contra o outro, depois se acariciaram ternamente e, finalmente, se disseram que não havia nada a fazer. Disse-lhe adeus com doçura, virou-se e cerrou, de golpe, a porta sobre si mesmo numa tentativa de secionar aqueles dois mundos que eram ele e ela. Mas o brusco movimento de fechar prendera-lhe entre as folhas de madeira o espesso tecido da vida, e ele ficou retido, sem se poder mover do lugar, sentindo o pranto formar-se muito longe em seu íntimo e subir em busca de espaço, como um rio que nasce.

Fechou os olhos tentando adiantar-se à agonia do momento, mas o fato de sabê-la ali ao lado e dele separada por imperativos categóricos de suas vidas, não lhe dava forças para desprender-se dela. Sabia que era aquela a sua amada, por quem esperara desde sempre e que por muitos anos buscara em cada mulher, na mais terrível e dolorosa busca. Sabia, também, que o primeiro passo que desse colocaria em movimento sua máquina de viver e ele teria, mesmo como um autômato, de sair, andar, fazer coisas, distanciar-se dela cada vez mais, cada vez mais. E no entanto ali estava, a poucos passos, sua forma feminina que não era nenhuma outra forma feminina, mas a dela, a mulher amada, aquela que ele abençoara com os seus beijos e agasalhara nos instantes de amor de seus corpos. Tentou imaginá-la em sua dolorosa nudez, já envolta em seu espaço próprio, perdida em suas cogitações próprias – um ser desligado dele pelo limite existente entre todas as coisas criadas.

De súbito, sentindo que ia explodir em lágrimas, correu para a rua e pôs-se a andar sem saber para onde...

Essa crônica foi extraída da obra Para Viver um Grande Amor - Crônicas e Poemas, que fez parte da Coleção Folha - Grandes Escritores Brasileiros, publicada em 2008

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Pomo

por César Magalhães Borges

A inocência será
a meta final
da civilização

Setas arremessadas
a um alvo
cada vez maior:
tudo será alvo
para que se acerte

amor
sem a previsão de
lucro

lucro
que não cave
a desvalia
e distribua
a cada um
o bem

o bem-estar
sedimentado
após a saturação
do mal

bem constante
seguindo a cadência
candura
e sabor
da eternidade

as diferenças contempladas
pela beleza,
curiosidade,
inteligência,
respeito,
carinho
e generosidade:
terra sem fronteiras

E quem chamar
a tudo isso
de utopia,
será acusado
de falta de inocência
e condenado a cumprir pena
no jardim da infância
e das delícias
até ter brincado
em todos os brinquedos,
rodas
e cantigas

a humanidade adulta
perseguindo a perfeição
da inocência absoluta

círculo que se completa:
sangue que corre
pelo cordão umbilical:
rebentos da mais pura vida.

Esse poema foi extraído do livro Folhas Soltas (poesia incidental), uma edição independente de 2006 e o quarto livro de poemas de César Magalhães Borges, que também produz obras de literatura infantil e transita, com muita propriedade, no universo das crônicas, contos, roteiros para teatro e canções. Vale observar que o blog não permite dispor os versos como o autor os concebeu, mas creio que sua essência está registrada aqui.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

O habilidoso Perna Curta

por Wagner Hilário

– Separa a gelada que tô na seca, Matias! – gritou de longe, Tininho, com seus um e sessenta e cinco de altura, embrulhados numa morenice cobre, curtida pelos anos, mais de cinquenta, nariz empinado, olhar malandro, tronco robusto, barrigudo, pernas curtas e mancas.

Dirigia-se ao bar do Mamá, contíguo ao Campo do 13, onde passava o domingo acompanhado dos amigos e das cervejas, cujo prazer desfrutava lenta e pacientemente, sóbrio o suficiente para contar as suas histórias impagáveis, de veracidade questionável, e assistir às peladas no campo de terra batida.

– Vamos ver se a molecada do Cortiço ganha hoje, né, Matias? Semana passada foi feio – observou, antes mesmo de sentar-se à mesa de ferro que estampava a marca da gelada que ele não toma... “Dá dor de cabeça.”

– Fala, Perna Curta, qual é o causo de hoje? – disse o jovem centroavante do Cortiço, com ar de deboche.

– Cê sabe que nos meus causo cê não entra, né, Ari? Só entra boleiro de verdade – retrucou Tininho.

A molecada do Cortiço, que àquela hora já se espalhava pelas mesas do bar, riu da tirada. Ari esboçou resposta, mas o cortaram.

– Quieto, que cê foi zuado – gritaram.

– Eu já contei que fiz dupla de ataque com o Cláudio Adão? – atiçou-os, Tininho. – Serei breve. Já passou das nove. – O Cortiço jogaria às dez.

Pegos pela promessa de mais um episódio da trajetória futebolística de Perna Curta, a molecada largou a sinuca e parou para escutá-lo, como sempre.

Os mais velhos conheciam-no há mais de vinte e cinco anos, quando se mudou para o bairro já com o joelho esquerdo bichado, sem poder jogar. Habituaram-se às suas histórias. Duvidavam que fossem verdades (ninguém nunca o vira chutar uma bola), mas preferiam não descobrir. “O cara é boa gente, sempre racha a cerveja.” Agora, diante dos jovens, os antigos, como Ticão, técnico do Cortiço, faziam-se de testemunhas dos feitos dele.

– O Adão tinha quando muito uns quinze anos; eu vinte. Jogávamos pelo Estrela da Vila Maria contra o Negritude da Vila Matilde. A negrada marcava! Nem eu nem o Adão tínhamos feito nada até os quarenta e dois do segundo. O jogo estava zero a zero, quando num vacilo do volante deles, deixou a bola passar, dei um tapa embaixo da criança e chapelei o zagueiro. O Adão me mirou com os olhão esbugalhado, correu pela frente do central. Empurrei a princesa pra ele que sentiu o goleiro um pouco adiantado. Da meia lua, tocou fácil de canhota por cima. Ela entrou rente ao travessão e à mão do goleiro.

Os ouvintes se imaginavam na jogada. Na mente, para enfeitar, gramavam o Campo do 13 e enchiam as laterais de arquibancadas e torcedores. Até que a voz ressentida de Ari, em virtude da tirada que lhe dera Tininho no início da conversa, findou o transe.

– Aí, Perna Curta! Cê é mó cascateiro. O Adão é carioca, nunca ia vir jogá no Estrela aos quinze anos. Mentiroso!

Tininho lançou-lhe um olhar de desprezo. Inabalável, mirou os presentes: constrangidos, como se uma verdade indesejada acabasse de vir à tona. Lambeu os beiços.

– Ceis preferem os meus causo, ou a grosseria desse perna-de-pau?

Olharam-se. Ticão, negro como carvão e alto, uma autoridade, censurou Ari com os olhos e disse:

– Tininho, conta a que cê deixou o Luiz Pereira sentado aquela vez.

Perna Curta contou, habilidoso, como sempre.

Inspirado em textos e personagens de Ariano Suassuna

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

As novas eras

por Bertolt Brecht

As novas eras não começam de uma vez:
meu avô vivia no novo tempo,
meu neto viverá talvez ainda no velho.

A nova carne é comida com os velhos garfos.

Os carros automotores não havia
nem os tanques.
Os aeroplanos sobre nossos tetos não havia
nem os bombardeiros.

Das novas antenas vêm as velhas tolices.
A sabedoria é transmitida de boca em boca.

Esse texto foi extraído da obra Bertolt Brecht – Poemas 1913-1956, publicada pela Editora 34, em 2001, e fruto da seleção e tradução de poemas do autor alemão feitas por Paulo César de Souza.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Para lembrar de viver

por Wagner Hilário

As netas, os netos, todos traziam um traço, todos eram, de alguma forma, imagem e semelhança dela. As ruas latiam de saudade, e o céu violeta da tarde trazia a noite, que, quente ou fria, a partir daquele fatídico dia, seria um pouco mais solitária. A televisão era moderna, quadro de pixels, mas não lhe fazia mais colorido e nítido o hoje do que fora o ontem. Só agora percebia que não se lembrava de ter vivido sem ela.

Era o primeiro dia sem sua mão enrugada e gelada de lavar as verduras para o almoço; o primeiro dia sem ouvir as reclamações sobre as migalhas de pão espalhadas pelo chão da sala, onde lugar de comer era na cozinha; o primeiro dia sem gritar para que ela se calasse e o deixasse ouvir o noticiário esportivo no antiquado rádio-relógio.

Quando o caixão mergulhou na sepultura, ele não chorou. A companhia dos parentes afastava as lágrimas do viúvo. Até gostaria de mostrar a todos que sentia na alma a dor da partida, mas por motivo desconhecido, perdido na infância, não conseguia. O fato era que o destino havia lhe amputado metade da vida, a seco. É sempre assim, com qualquer um; não tinha privilégios.

Agora, queria ninguém em casa, fazendo-lhe companhia. Queria encontrá-la na ausência dos cômodos, amar-lhe a saudade como a amara sem nunca saber demonstrar em outro lugar que não fosse a cama – ao menos nisso acreditava. Queria que ela fosse o sempre, velha ou nova, não importava, desde que fosse ela. Só agora notava...

Só agora notava que não havia ninguém para lhe dizer o que trazer do “mercado”.

Os papéis na escrivaninha da antiga despensa, há alguns anos transformada em “sala de tricô”, estavam em branco, simetricamente empilhados – migalhas do seu jeito de viver. Quantas vezes não foi às compras, acompanhado dela em forma de letras, a eterna muleta de sua memória, distraída a tudo que não fosse para seu prazer abstrato, distraída a tudo o que fosse prático, necessário, comezinho. O dia-a-dia era trabalho da esposa.

Sentou na cadeira em que ela costumava sentar para escrever as listas de compra e derramou duas tímidas lágrimas. Respirou fundo a coriza de tristeza e tossiu para evitar que ela enodasse ainda mais sua garganta. Reclinou-se na cadeira em direção à escrivaninha, pegou um lápis, o lápis dela, e fez a lista de compra que, naquele dia, se ali estivesse, ela faria.

Enxugou o rosto, com a velha mão cheia de calo, e partiu para o supermercado, com a vida anotada no papel, e o espírito perdido no passado.


Esse texto foi primeiramente publicado na revista SuperHiper, veículo da Associação Brasileira de Supermercados (Abras), em setembro de 2008.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Elogio do esquecimento

por Bertolt Brecht

Bom é o esquecimento!
Senão como se afastaria o filho
da mãe que o amamentou?
Que lhe deu a força dos membros
e o impede de experimentá-la.

Ou como deixaria o aluno
o professor que lhe deu o saber?
Quando o saber está dado
o aluno tem de se pôr a caminho.

Para a velha casa
mudam-se os novos moradores.
Se os que a construíram ainda lá vivessem
a casa seria pequena demais.

O forno esquenta. Já não se sabe
quem foi o oleiro. O plantador
não reconhece o pão.

Como se levantaria pela manhã o homem
sem o deslembrar da noite que desfaz o rastro?
Como se ergueria pela sétima vez
aquele derrubado seis vezes
para lavrar o chão pedregoso, voar
o céu perigoso?

A fraqueza da memória
dá força ao homem.

Esse texto foi extraído da obra Bertolt Brecht – Poemas 1913-1956, publicada pela Editora 34, em 2001, e fruto da seleção e tradução de poemas do autor alemão feitas por Paulo César de Souza.