terça-feira, 24 de março de 2009

Desaceleração

Pessoal, em virtude da forte demanda de trabalho que terei neste mês, o blog será atualizado, provavelmente até o fim de abril, uma vez por semana.

A próxima atualização será feita na segunda-feira que vem.

Conto com a compreensão e a leitura de todos.

Att., Wagner Hilário.

sexta-feira, 20 de março de 2009

Manuscrito

por Wagner Hilário

Escrevo a vida à mão
caneta esferográfica
trêmula imperfeição

Rasuro o tempo
palavras precipitadas
Só não me atiro do precipício
porque sei pedir perdão

Minha caligrafia é pensa
meu juízo, prejuízo, benefício
Frágil identidade

Escrevo insone minha oração
Assumo de punho
a autoria dos meus pecados
e méritos

Aguardo inquieto
a redenção.

quarta-feira, 18 de março de 2009

Crônica dos Pães

por Lourenço Diaféria

Certa vez uma criança caiu do vigésimo andar de um prédio, em São Paulo. Seu corpo bateu na calçada e o baque assustou as pessoas que viram a queda. Mas a criança se levantou. Conduzida a um hospital, os médicos custaram a acreditar que nada lhe houve acontecido. A criança ficou em observação e recebeu alta. Está viva até hoje.

A cidade esqueceu o fato. Eu o relembro agora, porque todos os dias vejo o prédio de onde a criança caiu. É um edifício com muitas janelas escuras, onde se penduravam varais com roupas de cima e de baixo. Nas tardes luminosas, ele se ressalta compacto contra o fundo fuliginoso do horizonte, onde se diluem chaminés, telhados e crista da serra.

Os apartamentos do prédio são cubículos habitados pela tripulação anônima das ruas; gente quase sempre sem genealogia e sem bens de raiz. Gente que tem como único patrimônio o cotidiano áspero. No edifício calcinado da várzea, residia a criança singular, que rolou de sessenta metros de altura e continuou viva. Cada vez que encaro esse edifício enfavelado, pergunto-me por que os milhares de olheiras e gente amarfanhada. E eu, que não acredito em marcianos, vejo-me forçado a pensar que dali voou um anjo sem asas, e outra vez se renova minha mais descarada crença no milagre. Não que eu dependa desse milagre urbano e atual para acreditar nos antigos e futuros milagres. Não é isso. Sei que as leis da Física estão aí justamente para explicar que um corpo de criança, baixando do vigésimo andar em velocidade crescente, pode Ter atenuada sua queda ao bater nos fios de iluminação – como aconteceu – e chegar, vivo, de encontro ao chão de concreto. E continuar vivo e esperto como o corpo de uma criança alada. Mas não é a
sobrevivência da criança que me informa o milagre. É saber que a Física também gosta de crianças.

O mal dos cronistas é que eles se impressionam com coisas pequenas e passageiras. Posso dar exemplos. Dos bons cronistas que conheço, gosto especialmente de quatro. A rigor, não são nossos contemporâneos, embora sejam atualíssimos. E cada vez mais atualizadíssimos, à medida que aumentam a angústia e a perplexidade da humanidade. Os cronistas a que me refiro chamam-se Mateus, Marcos, Lucas e João. Talvez nunca tenham se preocupado demais com pormenores históricos; e penso que jamais seriam convidados para fazer parte da associação dos jornalistas científicos. Eu diria que eles são cronistas das intenções. Li muita coisa deles, e me parecem totalmente autênticos. Em suas palavras, queima-se uma chama intensa e viva. Diria que eles iluminam o mundo. Admira-me até que os jornais, indiscutivelmente, os maiores redutos de cronistas do País, não tenham tido ainda a ideia de contratá-los. É uma pena, sem dúvida. Mas é essa ausência que me permite, hoje, aproveitar um dos temas mais fascinantes focalizados pelos quatro escritores. ... Trata-se da multiplicação dos pães.

Muitos leitores, que não acreditam nem em milagre de criança que cai do vigésimo andar e não morre, ficam intrigados como as pequenas divergências de palavras no mesmo relato desses cronistas. Mateus e Marcos narram duas multiplicações dos pães. Lucas e João se limitam a uma única versão. Para quem não gosta de cronistas, ou de milagres, essa falha põe tudo a perder. Mas o importante no caso é o fundo de verdade da narrativa. De modo que não me custa nada fingir de cronista e tentar contar esse mesmo fato da multiplicação dos pães, como se não tivesse existido milagre algum. Ou antes: como se tivesse acontecido um milagre ainda maior do que o discretamente narrado pelos quatro cronistas do Evangelho.

Foi assim: a multidão tinha se reunido para ouvir o homem que anunciava a justiça, o perdão, o amor e a ressurreição. Portanto, a barra não era fácil. Num certo momento, o homem que pregava fez uma pausa e avisou que estava na hora de aquela multidão comer. Muitos dos ouvintes haviam vindo de longe. Os amigos do homem, ressabiados, explicaram que não havia alimentos para todos.

O homem que pregava a justiça sorriu quando viu que um menino na multidão oferecia seus cinco pães e dois peixinhos, que havia trazido na matula. Esse menino devia Ter mais fé que os adultos. Com esse pão e peixe, o homem pediu que todos se assentassem na relva, em grupos. Ele ia dividir o pão e o peixe entre todos, e cada um comeria uma migalha, uma isca de peixe. Mas, então, os adultos se tocaram e imitaram o gesto do menino. E eis que um tira de seu alforje mais um pão, e mais um peixe; e outro segue-lhe o exemplo; e assim por diante. E cada um cedeu o que havia trazido só para si e para sua fome. Daí a pouco estavam todos comendo pão e peixe, e um elogiava o peixe do amigo, e o pão do vizinho, e ficaram fartos, alegres e ainda palitavam os dentes de satisfação. E apanharam-se as sobras, para que nada se perdesse, pois daí a um nada chegariam os lixeiros, e recolheriam cestos de pães e peixes e iriam para suas casas contando às mulheres que, à beira do lago de Tiberíades, havia um homem que distribuía com igualdade, dividia com sabedoria e anunciava a vida eterna.

Esse texto foi extraído do endereço eletrônico http://www.amoliteratura.hpg.ig.com.br/diaferia1.htm

segunda-feira, 16 de março de 2009

Sonâmbulos

por Wagner Hilário

A cidade são carros
e asfalto
solo lunar
pretensamente pavimentado

Lágrimas de inverno
correm
cadentes
os olhos do metrô

O dia é manhã cedo
As nuvens escuras
fazem-no
entardecer sombrio

Barulho
ferro atrito
trilho motor

Silente sonolento
o homem segue
as voltas
do mundo

sexta-feira, 13 de março de 2009

História Alegre

por Wagner Hilário

Jorge queria escrever um texto alegre, que narrasse uma história de risos. Estava cansado da tristeza da sua prosa, de seus versos sem vento de manhã, sem caneta que descrevesse o dia. Era tudo tão noite que de claro só as luzes piradas das danceterias e a ideia de que o mundo é um fado e que a felicidade não passa de uma pobre mania dos ignorantes. E assim o raio da inspiração não vinha, e sua alegria oca de malandro latino já nem pra fazer som lhe bastava.

Até que do ventre da solidão ele foi tirado à luz da carência. Descobriu-se frágil como um recém-nascido, fruto do prazer feito para tolerar a tristeza, fruto de um enlace sem amor, sem enlevo, mas que ainda assim era mais que um sopro qualquer de vento ou de brisa, era inspiração cristalina, mais bela que a de qualquer artista, a baforada da esperança de Deus, a que nos habituamos chamar de vida. E se Deus lhe jogara nos braços aquela criaturinha, depois de tanto Lhe pedir alegria que lhe valesse efusiva narrativa, pensou que ali estivesse o princípio do roteiro, a pista de decolagem de sua história.

Foi o tempo de nutrir a cria o que a mãe-loba passou ao lado do pequeno. Não se sabe ao certo o motivo do abandono, quem sabe o fato de ela própria ser órfã de pai e mãe e criada pelos avôs maternos, cuja bronca da filha não lhes deixou na barriga do afeto líquido para alimentar a neta de amor. Então, Jorge, que apesar da tristeza de poeta, sempre fora amado, lembrou-se, no difuso inconsciente, do carinho em seu reservatório de emoções e não titubeou em banhar de paternidade seu menino pelo tempo que fosse necessário, até que se tornasse um sujeito grande e feliz.

Mas como isso, se nem mesmo ele era capaz de contar uma história alegre? Como, se ele não se via feliz? Não sabia, mas daria um jeito. Assim, por longos anos, esqueceu-se da paranoia da dita história alegre e se entregou ao filho como um suicida se entrega à morte. Esqueceu-se da própria tristeza, dando-lhe papel e tinta guache para que aprendesse desde cedo a pintar a própria vida com as cores mais coloridas. Falou-lhe de um Deus em que antes não cria, mas que depois do pequeno passou a cultivar. Falou-lhe da glória de ser humilde e da magia de transformar a própria realidade, que moram no peito dos homens, mas tão difíceis de encontrar.

O pequeno se tornou meio-médio, depois médio, depois meio-grande e finalmente cresceu. Como o pai, era apaixonado pelas palavras, e tanto de falar como de escrever gostava muitíssimo. O pai sabia e, em silêncio, a tudo lia, já que o menino com ele não tinha segredos, e vice-versa. Jorge então se convencia: a tristeza, pro poeta, é sina. Até que certo dia o menino lhe entregou um texto extenso. Ele devorou as páginas e conteve as lágrimas nos últimos parágrafos. Olhou pela janela o céu poente, viu azul, viu roxo, viu o laranja do sol tingir as nuvens, viu as cores da pintura de seu menino, que naquele instante entrou no cômodo...

– É a história do pai, né, filho? É uma história alegre.

quarta-feira, 11 de março de 2009

Cordas de cores

por Wagner Hilário

Uma manhã solta no vento
traz cordas de aço
harmônicas
como num toque clássico

Atido à letra entendo
que o cancioneiro é bravo
faz de uma canção brega
um belo espetáculo

Nina neném com cólica
e põe a mamãe cansada
num plácido leito de fadas

Mesmo a velha senhora
com bico de papagaio
ergue-se no tom da nota
e não reclama do fardo

De fato, numa canção
antes do bom arranjo
do palavreado, vale o coração

Ou, ainda

numa manhã cinza e fria
sem horizontes
cabe a vossa pupila
colocar as cores

Muito obrigado!

segunda-feira, 9 de março de 2009

Um homem no trânsito (descrição)

por Wagner Hilário

Olhos atentos ao fluxo de automóveis que no instante não flui. Uma caneta vermelha Bic – vê-se a marca e a cor pela tampa – no bolso da camisa branca que pela aparente textura é nova, sem listras nem detalhes, lisa. Contudo, a maneira como a traja confere à veste uma impressão de velha. Os três botões mais próximos ao pescoço, abertos. O peito parcialmente visível traz junto de si um óculos de grau, de armação antiquada e cor vinho, pendurado por uma corda preta que lhe envolve o pescoço. Esse aspecto mais a barriga sobressalente na camisa dão-lhe um ar de viciado em jogo de cavalos, como se estivesse diante de uma televisão que transmite uma prova despida de glamur, damas bem vestidas, charutos e cartolas. Só vale mesmo pra quem aposta.

O rosto do homem é vermelho do clima e carnudo, mas ainda assim seria exagero chamá-lo de gordo. O nariz é fino, a boca também. A atenção do olhar ao trânsito em momento algum sugere tensão, irritação, nervosismo. As sobrancelhas e as pálpebras crispadas devem-se ao sol mais soberano e luminoso do que nunca nesta manhã de março, de céu azul e rasas nuvens brancas, apenas levemente encardidas em suas extremidades, em virtude da poluição paulistana.

Ele está sentado ao volante de um Volkswagen Parati prata um ponto oito. A exemplo do motorista, o veículo não é novo nem velho. Ao ver que os carros quase apinhados à sua frente progridem, em tênues solavancos, como se soluçassem para evitar as milhares de batidas possíveis entre si, ele adquire uma posição mais ereta ao volante – insuficiente para minimizar a saliência abdominal –, engata a primeira e segue o séquito caótico dos carros recém-nascidos para mais um dia de trabalho na frenética e em constante colapso cidade de São Paulo.

sexta-feira, 6 de março de 2009

Espelho das águas

por Wagner Hilário

A poesia
ainda me dá mais prazer
O verso
é como um lance da sorte
se arroja e
num facho de luz
germina
epidemia de sensações
risos e lágrimas

É como um corte
de navalha
no céu
rasga o véu azul
no ponto vital
jorra ao léu
um delicado arco-íris

O poeta
sabe tocar o infinito
descarta
aeronaves modernas
se posta
num canto rústico da terra
e, à beira de uma laguna
beija o universo
no espelho das águas

quarta-feira, 4 de março de 2009

E, de repente...

por Rubem Alves

E, de repente, tudo acabou. A Bolsa de Nova York quebrou. Meu pai, exportador de café, perdeu tudo. Não conseguiu fazer as transformações alquímicas por meio de palavras a que estava acostumado. Sua magia era fraca para tragédia tão grande.


Esse texto foi extraído da obra O velho que acordou menino [infância], de Rubem Alves, publicada, em 2ª reimpressão, pela editora Planeta, em 2007.

segunda-feira, 2 de março de 2009

O Poeta Aprendiz

por Vinícius de Moraes

Ele era um menino
valente e caprino
um pequeno infante
sadio e grimpante.
Anos tinha dez
e asinhas nos pés
com chumbo e bodoque
era plic e ploc.
O olhar verde-gaio
parecia um raio
para tangerina
pião ou menina.
Seu corpo moreno
vivia correndo
pulava no escuro
não importava que muro
e caía exato
como cai um gato.
No diabolô
que bom jogador
bilboquê então
era plim e plão.
Saltava de anjo
melhor que marmanjo
e dava o orgulho
sem fazer barulho.
No fundo do mar
sabia encontrar
estrelas, ouriços
e até deixa-dissos.
Às vezes nadava
um mundo de água
e não era menino
por nada mofino
sendo que uma vez
embolou com três.
Sua coleção
de achados de chão
abundava em conchas
botões, coisas tronchas
seixos, caramujos
marulhantes, cujos
colocava ao ouvido
com ar entendido
rolhas, espoletas,
e malacachetas
cacos coloridos
e bolas de vidro
e dez pelo menos
camisas-de-vênus.
Em gude de bilha
era maravilha
em bola de meia
jogando de meia-
-direita ou de ponta
passava da conta
de tanto driblar.
Amava era amar.
Amava sua ama
nos jogos de cama
amava as criadas
varrendo as escadas
amava as gurias
da rua, vadias
amava suas primas
levadas e opinas
amava suas tias
de peles macias
amava as artistas
das cine-revistas
amava a mulher
a mais não poder.
Por isso fazia
seu grão de poesia
e achava bonita
a palavra escrita.
Por isso sofria.
Da melancolia
de sonhar o poeta
que quem sabe um dia
poderia ser.

Esse poema foi extraído da obra Para Viver um Grande Amor - Crônicas e Poemas, que fez parte da Coleção Folha - Grandes Escritores Brasileiros, publicada em 2008