quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Solenemorte


"Deus não castiga ninguém sem ter avisado"
Orígenes

por Wagner Hilário

Os senhores e as senhoras acompanhavam com atenção duvidosa a solenidade. A festa era deles e o mestre-de-cerimônia deveria fazer o máximo para agradá-los. Chegava a hora de convocar o Diretor da respeitável instituição, para que discursasse, declarasse sua imensa satisfação de contar com a presença de todos, dos amigos, parceiros, funcionários...

— Uma salva de palmas aos medíocres, cujo principal representante, eu tenho agora o desprazer de convidar ao palco.

As pessoas na plateia se entreolharam — riso amarelo nas caras. Devia ser alguma piada e em breve o palestrante daria conveniência ao inconveniente. Salvaria o Diretor e todos daquele desconforto com uma manobra humorística lisonjeira. Mas o silêncio do mestre-de-cerimônias era irrevogável, como o sorriso cravado em seu rosto a espera da chegada do Diretor e dos aplausos a guiá-lo até a bancada.

Então os aplausos começaram a brotar das mãos dos convivas, que pareciam não controlá-las, seduzidas pelo silêncio do mestre-de-cerimônias. As pernas do Diretor, de vontade própria, contras as ordens do seu cérebro, puseram-no de pé e o consagraram medíocre, conduzindo-o ao palco. Um desespero vão — como sempre são os desesperos — dominou seu íntimo, sem que seus olhos, seguros de si, como sempre, nada deixassem transparecer.

Os convivas aplaudiam sem parar e contrafeitos. Seus rostos, porém, resplandeciam os mesmos duvidosos sorrisos de outras solenidades oficiais, iluminados pelos fleches de um batalhão de fotógrafos que retratavam o Diretor em sua cruel caminhada. Ele chegou ao palco, subiu as escadas com passos firmes, recebeu o cumprimento do mestre-de-cerimônia, risonho a vida toda, que ainda lhe deu, antes de se retirar, um vigoroso aperto de mão.

— Senhoras e senhores, este instante é um sonho pra mim e espero que seja pra vocês também. — As palavras saiam de sua boca, movidas pela mesma força desconhecida que o havia carregado para aquele palco.

Antes de continuar o discurso, um golpe de luz dos holofotes fez sua vista estalar, doer e cegar, por instante. Uma lâmina de confusão cortou seu raciocínio-pronto, tirando-o do transe. Ele sentiu o suor lamber, frio, suas faces. Estava, como nunca, inebriado de si mesmo.

— Na verdade, senhoras e senhoras — a coragem típica desse estado já havia infectado sua língua —, eu preciso fazer uma correção: este instante não é um sonho, mas um pesadelo pra mim — ele, inteiro, era a coragem, e, quando notou que surgira em sua mão direita uma Colt 45, levou-a à cabeça e, diante dos sorrisos pré-moldados dos convivas, prontos para aplaudir qualquer cena, Pá!

— O que foi amor? Teve um pesadelo? — disse sua esposa ao vê-lo erguer de súbito o tronco e ficar sentado na cama.

Ofegante, retomando o ar que se esvaíra com a coragem onírica e tirando a camiseta molhada de suor etílico, o Diretor minimizou...

— Sonhei que nosso evento vai ser um fracasso.

— Relaxa, meu amor — disse sua mulher, ciente da mixórdia que nos toma a cabeça quando estamos entre o pesadelo e a realidade —, ele já aconteceu e foi um sucesso. Acabamos de voltar dele. Todos estavam felizes, a comida estava excelente e o seu discurso, maravilhoso.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Seu Zé comunica a todos

O texto que lerão abaixo é uma crônica publicada na revista em que trabalho como subeditor, a SuperHiper, uma publicação especializada em negócios para o setor supermercadista, mas que dispões de espaço para um bocadinho de arte e descontração chamado Cotidiano. Boa leitura!

por Wagner Hilário

– Pega! Pega! Pega!

– O que foi?

– O menino roubou o mercadinho do seu Zé.

– Meu Deus do Céu, quanta gente. Se pegar, não sobra nada do moleque.

Seu José sai dos fundos da loja, onde fica seu escritório. Descobre que o bicho pegou e que por isso o bicho vai pegar pra ele.

– Fica despreocupado. Tem uma molecada bem ligeira atrás do vagabundo.

– Como foi?

– Meteu um canivete na fuça da caixa e embolsou tudo o que tinha na registradora.

– Tava de olho fazia tempo, porque ele atacou justo numa hora que não tinha ninguém perto.

– E a menina? – pergunta seu José.

– Tá bem. Só o susto só.

Sofia, a caixa, tá num canto, tomando água e recobrando o fôlego que o assaltante também lhe roubou. Seu José sai da loja e segue pela rua na direção da fuga. No caminho, ele berra, sem esconder o sotaque de Portugal...

– Deixa-o comigo! Eu resolvo! Ninguém bate nele! Deixa-o comigo! Segura, só!

O rapaz já tá com a cara vermelha de socos, quando seu José chega. É magro feito cabo de vassoura e tá nitidamente assustado, embora menos do que ficaria alguém que não tivesse o costume de cometer infrações. Tá claro que não é o primeiro assalto do pequeno meliante. José olha pra ele com a severidade moral que seus olhos geralmente expressam. Robusto como poucos em sua idade, toma o magrelo pelo braço, brusco. O solavanco impressiona até mesmo aqueles que, há pouco, socavam a fuça do infeliz.

– Desculpa, moço.

– Q’cê vai fazer com ele? – pergunta um sádico, temendo a possibilidade de não poder assistir ao espancamento.

Mudo, seu José segue seu curso, arrastando o garoto magrelo, borrado de medo e já despido do seu canivete. Entra no mercadinho, atravessa a área de vendas, vai para os fundos da loja, entra no escritório e se tranca com marginal lá dentro. Trinta minutos depois os dois saem. Vão até onde se encontra Sofia; o garoto, com os olhos cheios de lágrima e arrependimento, se ajoelha, pede desculpas e lhe entrega o dinheiro roubado.

Depois, seu José comunica a todos...

– Este rapazinho já tem problemas demais e estava inventando mais um para sua própria cabeça... Não o entregarei a polícia. Ele mora na rua (não na nossa rua, digo no meio da rua), não tem pai nem mãe, mas pelo que me contou, não adiantaria muito tê-los. Sobrou-lhe o padrasto, que também não vale um trocado. Vai ficar aqui comigo, cuidando da segurança da venda, empacotando compra e ajudando a freguesia. Se me aprontar alguma, já disse que lhe capo...

– Mas o que é isso?! – berrou o sádico. – Manter entre a gente um criminoso desses é uma irresponsabilidade total.

Ruim dos ouvidos, seu José encarou o protesto vindo do grupo de curiosos como um elogio.

– Isto mesmo: responsabilidade social. Está na moda.