terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Manhã de Cão

por Wagner Hilário

O nome dele é Rui. Na rádio Sulamérica Trânsito, chamaram-no “ouvinte Rui”.

— Gostaria de alertar que no sentido-Rio de Janeiro da Dutra há um cãozinho magrinho tentando atravessar. Alguém precisa ajudar o bichinho a atravessar, porque senão teremos mais um bichinho morto na estrada. Seria importante que as autoridades tomassem alguma providência, pra impedir que isso aconteça.

A mensagem do Rui — mais ou menos o que se lê acima — fora gravada na caixa-postal da rádio e transmitida ao público ouvinte com a mesma seriedade com que a emissora informa sobre as condições dessa ou daquela via. Os ouvintes entram no ar, geralmente por gravações telefônicas, e dizem algo como: “peguei a via a tal e está horrível, quem puder, pegue outra” ou “peguei a rua x em alternativa à y e me dei muito bem, recomendo a todos que estiverem por esses lados”. Os apresentadores fazem o mesmo.

Porém, a mensagem do “ouvinte Rui” não tratava de salvar compromissos ou aplacar a impaciência dos motoristas. Rui não pedia um guincho da concessionária da rodovia pra desobstruí-la. Nenhum caminhão tinha capotado, nenhum motoqueiro tinha ido parar embaixo de carro nem dois moleques tinham colidido durante um racha. O problema não era dos homens nem de suas máquinas, mas do cão, ali, na piedade de sua magreza, bastante atrapalhado pelos homens e suas máquinas.

O Rui quis salvar o bichinho. Lógico, parar o carro na Dutra e descer pra ajudá-lo seria perigoso pra ambos. Assustado, o cachorro podia correr pro meio da rodovia e ser desossado por um... dois pneus. Clamou às autoridades em rede metropolitana de rádio, tratando o animal pelo diminutivo, como costumamos fazer com nossos jogadores de futebol, amigos e parentes. Não sei se foi atendido, mas ele e o sujeito que selecionou sua mensagem pra ir ao ar salvaram minha manhã no congestionamento.

Esse texto foi publicado anteriormente no blog www.narravidas.wordpress.com

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Mater dolorosa

Por Adélia Prado

Este puxa-puxa
tá com gosto de coco.
A senhora pôs coco, mãe?
— Que coco nada.
— Teve festa quando a senhora casou?
— Teve. Demais.
— O que que teve então?
— Nada não menina, casou e pronto.
— Só isso.
— Só e chega.
Uma vez fizemos piquenique,
ela fez bolas de carne
pra gente comer com pão.
Lembro a volta do rio
e nós na areia.
Era domingo,
ela estava sem fadiga
e me respondia com doçura.
Se for isso o céu,
está perfeito.

Esse texto foi extraído da obra de Adélia Prado intitulada Oráculos de Maio, editada pela Siciliano.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

A corça branca

Por Jorge Luis Borges

De que agreste balada de verde Inglaterra,
De que lâmina persa, que região arcana,
Das noites e dias que o nosso ontem encerra,
Veio a corça branca com que sonhei esta manhã?
Duraria um segundo. Vi-a cruzar o prado
E perder-se no ouro de uma tarde ilusória,
Leve criatura feita de um pouco de memória
E de um pouco de olvido, corça de um só lado.
As deidades que regem este curioso mundo
Deixaram-me sonhar-te, porém não ser teu dono;
Talvez numa esquina do porvir profundo
Volte a encontrar-te, corça branca de um sonho.
Também eu sou um sonho lúcido que perdura
Um pouco mais que o sonho do prado e da brancura.

Este poema foi extraído da obra Livro dos Sonhos, escrita em parte, compilada em outra por Jorge Luis Borges. Editada pelo Círculo do Livro em 1976, a obra foi traduzida por Cláudio Fornari.