segunda-feira, 24 de maio de 2010

Moral da história

por Wagner Hilário

Chego em casa farto de trabalho, sem paciência pra nada, querendo desaparecer por algumas horas, que no plano da reflexão devem durar anos-luz. Mas meu menino não deixa. Quer o pai que pouco vê ao longo da semana e que, muitas vezes, tem de dividir com mais trabalho aos fins de semana.

Meu pequeno Hércules quer lutar. Sobe nas minhas costas, quer que eu o leve de cavalinho. Isso é bom e ruim. Bom porque os homens também demonstram afeto pela brutalidade — poucas mulheres são capazes de compreender. Ruim porque tô cansado, a fim de descansar no sofá, assistir à tevê. Nada mais medíocre e comezinho. Quero que ele fique comigo, sentado, quietinho, falando só de vez em quando. O fato é que quero demais e quem quer de menos é mais feliz.

— Sai de cima, filho. Papai tá cansado. Depois, depois. Fica quietinho. Para de pular do sofá. O vizinho vai xingar, Gabriel. Isso aqui é apartamento... — Em vão. Aí recorro à ameaça de castigo e finalmente sou escutado. Então é a vez dele ficar mal-humorado, esbravejar com o pai, dar a entender que sou chato.

O desejo dele é pra lá de divertido, pra lá de rico. Eu me esforço tanto pra tantas coisas. O que me custa ter forças pra aproveitá-lo? O tempo passa, e quando a gente se dá conta disso, ajunta as tais forças e se supera. Por ele e pela gente; pela saudade que um dia vai sentir desse tempo que passa e jamais volta.

Então, eu brinco, pelo menos um pouco. Brincar na medida da vontade dele é tarefa sobre-humana. As crianças precisam de limite e o limite não é o deles, mas o dos outros, o do mundo. Nesse caso, o meu... É tarde da noite e ele precisa dormir.

— Conta uma história. Uma, não... Três, quatro...

— Tá, eu conto. Vai escovar os dentes antes.

Ele tá pra lá de feliz ultimamente: a mãe comprou um antisséptico bucal infantil. Tivemos algumas discussões porque ele achava que podia usar o nosso, desde que misturado com água. Dizíamos que nem assim. Ele ficava bravo. A hora de escovar os dentes era chata. Agora, tudo mudou.

— Terminou? Deixa eu ver. Vamos pra cama. Para quieto. Para de pular... Cê parece sua mãe, se descobre inteiro. Se continuar pulando, não vou contar história nenhuma. — Tô sem a menor disposição pra contar história, mas ele quer ouvir e me obedece; sossega, com um riso arteiro no rosto. Aí, manda a travessura:

— Conta sem ler.

Faço uma cara de descontentamento e digo que vou contar uma história lida, tem um monte de livro em casa. Além de contar vou ter de inventar! Tô sem cabeça pra isso.

— Ah, tá vendo, você não gosta de me contar histórias.

Não é verdade. Sempre amei contar histórias, ainda mais pra ele. Mas a conjuntura, o contexto não me favorece. Ter de criar algo novo, inédito, como ele deseja, às onze da noite, é difícil. Não vou contar a ele como foi meu dia de trabalho. Acho que não é isso o que ele quer ouvir.

Bom, sem desculpas. Se ele disse que eu não gosto de contar é porque passo essa impressão. Preciso desfazê-la.

— Vou lhe contar duas histórias em uma...

Era uma vez um papai que sempre chegava exausto do trabalho, que não tinha disposição pra brincar nem contar histórias a seu menino, apesar de tantos pedidos. Um belo dia, vendo o garoto brincar sozinho, sem nem mais procurá-lo pra repartir as suas brincadeiras, sentiu-se só, desimportante.

O pai o amava muito, sempre que o encontrava o enchia de beijos. Queria tê-lo perto, queria abraçá-lo e dormir junto com ele no sofá, vendo jogo de futebol. Mas não queria estripulias nem piruetas, queria evitar mais fadiga. O menino ‘tava noutra; ‘tava animado, não queria descanso, tinha muita energia pra gastar, apesar de já ser tarde da noite.

Se sentindo culpado, sentindo como se ‘tivesse perdendo um pouco da própria vida ao não usufruir da infância do filho, ele resolveu fazer o que tinha certeza que ia agradar seu menino. Disse a ele que iria lhe contar uma história de ninar...

Era uma vez um menino que ficava muito bravo porque o pai não tinha disposição pra brincar com ele nem pra lhe contar histórias à noite, quando chegava do trabalho. Porém, ele sabia que era amado, porque o pai lhe perguntava sempre como fora o dia, o que fizera na escola, dava-lhe broncas e também o enchia de carinho. Ainda assim, ele ficava chateado com o pai, que não brincava.

Um dia, o pai não chegou do trabalho e ele ficou aflito, ansioso, sem saber o que ‘tava acontecendo. Não conseguia brincar direito. Ficou ainda mais preocupado quando viu a mãe aos choros desligar o telefone. Correu pra perguntar a ela o que tinha acontecido.

Antes que eu pudesse dizer o que disse a mãe do menino a ele, na história, Gabriel, ansioso, se antecipou.

— O que aconteceu com o pai dele?

— É... O pai dele... — Ainda não tinha pensado. ‘Tava bolando algo e não queria matar o pai dele. — O pai dele havia sofrido um acidente, caído da escada, porque não tinha segurado no corrimão, e ‘tava hospitalizado. Mas depois de uma semana, ele voltou pra casa, e disse pro filho que logo estaria bom, pra eles brincarem.

— Uma semana? Nossa! É bem mais que um dia.

— São sete dias.

— Sete dias. Nossa!

Gabriel silenciou por alguns segundos. Pensei: “deve tá pensando na moral da história”.

— Como é que ele caiu? Onde foi que machucou? ‘Tava no trabalho? Alguém ‘tava junto?

— Ah, filho, isso é o que menos importa.

Eu queria que ele entendesse a moral ou “as morais” da história, que são: o papai precisa se esforçar pelo filhinho — não só pelo filhinho, mas por ele próprio, porque no fim das contas aquela troca toda valia muito mais a pena que ficar sentado no sofá vendo tevê — e o filhinho precisa compreender o papai, que o ama mais que tudo. Gabriel não parecia disposto a pensar nisso. Ele queria saber detalhes do acidente.

— O que ele machucou? A cabeça? Machucou muito?...

— Filho! Para de perguntar um pouco e me responde. O papai quer saber se você entendeu o mais importante da história e o mais importante não é como o papai do menino caiu, como machucou nem onde... Ele machucou um pouco a cabeça, mas não foi nada demais. Agora me fala o que é o mais importante dessa história?

— O mais importante é que o papai voltou pra casa.

Eu ri de felicidade. Não era a resposta que eu esperava, mas não havia melhor resposta pra ouvir. Disse a ele que era o melhor filho do mundo e lhe dei um beijo. Ele também ‘tava contente. Nem se lembrou das outras duas histórias que lhe devia. Disse a ele que era hora de dormir. Ele concordou na boa, me disse boa-noite, pediu minha mão pra segurar e logo adormeceu, segurando-a. Eu o cobri e fui pro meu quarto, agradecendo a Deus por ter me dado aquele momento, por ter me dado esta história.

domingo, 16 de maio de 2010

É roça, viu!

por Diego Carvalho

Um conjunto de telhas brilha no fim do dia sobre a casa pequenina que a chuva alcança. Segura a barra e não desaba sobre o chão que ali descansa. A noite avança sobre o dia enquanto a água faz caminho numa trilha alaranjada descendo lesta pra cair de encontro a grama. A lua parece trazer uma harmonia e as nuvens se vão. Canta grilo e cigarra perto das paredes rachadas da casa que brilham no resto das gotas prateadas que ainda escorrem numa só direção. No meio do nada uma escuridão. Uma lâmpada brilha de repente na varanda e sozinha, de jeito que até entristece, ilumina o que pode. Faz-se notável então uma rede pendurada e encharcada que de dia não chamava a atenção. O poço acometido ao fundo da terra num topo de tijolo e o balde de madeira na ponta da corda que o vento sacode. Dá pra ouvir até respiração. E em destaque, a água fervendo de dentro da casa convida os sentidos que aguardam ansiosos tentando adivinhar se vai ser café ou uma boa xícara de chá. O cavalo dorme em pé que nem sonâmbulo e a bicharada tá atiçada pra caçar. É questão de tempo e de sorte, que se faz presente a morte, mais chamada de azar, pra seu Matuto, a pé, ter que andar.

O dia chega no horário batendo cartão às cinco da manhã. Ofusca toda e qualquer lâmpada de varanda que se aventurou a brilhar. “Esse aí é trabalhador!” Alguém reverencia o sol de todo amanhã que nunca faltou e nem pode faltar. E seguindo o exemplo do sol como de costume seu Matuto já tá com a sola grossa no chão, fumo e palha no bolso, de calo na mão, preparado para o trabalho.

Cumpade passa e de longe avisa num grito:

— Vixe, Austêncio! Os bicho cumêro o Tornado!

Tem coisa que você sabe que vai acontecer, mas também não sabe como prevenir, e quando chega a hora de fato não vai saber como remediar.

Matuto Austêncio num susto tropeça, ainda agachado no chão do quarto calçando a butina perde o equilíbrio e leva as mãos à cabeça. Ainda atordoado ouve a voz do cumpade se aproximando:

— Austêncio? Ce tá aí? Austêncio.....?

Ele se levanta depressa, sai do quarto, atravessa a cozinha chegando na porta da casa, dois giros na chave que destrava a fechadura e dá de cara com cumpade Zelito.

— Os bicho cumêro o Tornado!

Diego Carvalho é um dos responsáveis por eu escrever. É responsável também por construções como: "O medo da solidão é engraçado. Ele nunca atormenta quando estamos sozinhos e nunca nos deixa sozinhos quando temos alguém". Diego escreveu um livro, Quebra-Cabeças em Peças de Vida, estuda sistemas de informação, trabalha na área de programação e suporte de banco de dados, "adora projetos de animação" e dá aulas de jiu-jitsu e muay thai.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Justiça fálica

por Wagner Hilário

Todo ser humano é um infinito sideral insondável. Tobias sentia, mas não sabia disso, e como sempre negligenciou os sentimentos e superestimou a razão, permanecia ignorante. Ele só sabia disso em seu íntimo desconhecido, aquela porção de nós que não nos pertence, pertence ao sempre. Mas pra saber de verdade, com consciência, era necessário que se dispusesse a pesquisar isso em seus sonhos enigmáticos, era preciso o maior dos estudos, a que poucos de nós estão dispostos a empreender.

— Bobagens — ele dizia.

Seu caráter inquisitorial e dogmático o afastava das pessoas e o afastava de si mesmo. Não se dava conta. Sua mente privilegiada, porém, lhe assegurava uma posição social de destaque. Sua postura sobranceira inspirava o temor dos subalternos. Com esse temperamento, ele conseguiu a solidão. Depois de cansar de dizer que não tinha com ele uma relação profissional, a esposa resolveu deixá-lo e deixar toda a boa vida que a grana de Tobias ia-lhe propiciar. Foi-se embora, com o saco na lua da imbecilidade bem argumentada do marido.

Mas a todo império racionalista está reservado um tsunami do inconsciente, que traz consigo todas as impurezas de seus recalques. Frágeis, os diques de sensibilidade de Tobias foram facilmente vencidos pelo vácuo existencial em que se descobriu quando perdeu o emprego, quando se viu castrado do poder que julgava ser seu, pra sempre e desde sempre. Broxou uma, duas, três, infindáveis vezes na cama da puta, com a qual tentava salvar sua honra.

Foi depois da derradeira broxada que Tobias resolveu pôr fim ao seu drama, castigando todos os responsáveis pelos seus fracassos...

Asfixiou a puta com o travesseiro. Saiu do puteiro discretamente, mas rapidinho, antes que dessem pela morta e seguiu para a casa do ex-chefe, que o recebeu pessoalmente. Mal abriu a portão, Tobias acertou-lhe preciso na testa com uma barra de ferro que não conseguiria segurar com apenas uma das mãos. Entrou no carro, passou em casa, porque era caminho, pegou a 765 e continuou a via fatal. Tocou a campainha da casa da ex-mulher, que o recebeu, feliz como nunca e trazendo consigo uma iluminada barriga.

Tobias lacrimejou e a olhando atônito, perguntou:

— Quem é você?

— Só agora você resolveu saber?

— Eu ia te matar.

Jogou a arma no chão, dobrou os joelhos, deitou na calçada e esperou a polícia chegar.