sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Só me faça um favor na vida...

por Wagner Hilário

— Só me faça um favor na vida, filho, não tenha dó de si mesmo.

A figura do pai, já falecido, revisitando-o em sonho, com aquela frase que nunca lhe havia dito, mas que seria sua cara dizer, não deixou dúvida a Renato de que tinha de lamentar menos e realizar mais. Mesmo com os exemplos que via no dia a dia, de pessoas progredindo ao se fazerem de coitadas, seu inconsciente, com a gravidade da voz paterna, dizia para não ceder à tentação, não se entregar ao canto da sereia da autopiedade.

— Seja o forte, não o fraco que vence pela dó do outro — completa o pai, que preserva, no sonho, os olhos inchados do álcool que bebia em vida, a barba mal feita, os perdigotos que soltava enquanto falava e os lábios vermelhos intensos, características herdadas pelo filho.

Os orientais sempre disseram que é difícil discernir entre o que é, de fato, mundo palpável e o que é fruto da nossa imaginação. Essa dúvida, por aquelas bandas, é tão forte que já se crê, por lá, que, muitas vezes, não há diferença entre o que se imagina e o que existe. É comum dizerem que, na realidade, só existe o que se imagina. Exagero, sem dúvida. Mas também é exagero, pensa Renato, acreditar que se é capaz de discernir com clareza esses dois mundos. “Como não se pode duvidar que a realidade que vemos não é, na verdade, fruto da imaginação?”, pergunta enquanto escuta a namorada Diana comentar seu sonho.

— Que delírio! — Diz ela. — ‘Cê podia ter sonhos mais úteis.

— O abstrato é um terreno mais fácil pra mim.

— Vai morrer solteiro e de cirrose, então.

— Não estou longe disso, mas você e todo o seu pragmatismo também não. Ou acha que ainda é uma mocinha de 25 anos e que aquela branquinha ali é H2O?

Diana não gostou do que disse o namorado, mas procura não demonstrar que acusou o golpe. Acende um cigarro, que combina com suas olheiras e os dentes levemente amarelados, e começa a falar de darwinismo social.

— Vinga na vida o que melhor se adapta à realidade, não o mais forte, ainda mais quando o conceito de força está em se manter leal às próprias ideias. — Para finalizar seu discurso, ela devolve o ataque... — Idealistas, como você, são os maiores covardes do mundo.

— ‘Tá exagerando na ofensa.

— ‘Tô falando sério, é o que penso.

— Não disse que ‘tava brincando, falei da ofensa... Por que são os maiores covardes?

— Porque têm medo da batalha. Querem colocar um monte de regras, porque sabem que, com essas regras, a vitória é certa. A vida não tem regra, tem consequência. A consequência é a regra da vida.

Renato olha nos olhos escuros de Diana, que contrastam com seus cabelos loiros-brancos de química: há mágoa. A voz dela em seu discurso inspirado, ao ponto de confundir Renato, saiu entrecortada. Ele interpretou a voz embargada como uma demonstração de carinho incomodado. Toda mágoa tem um toque de carinho. Renato olhou pela janela do quarto, cinza de nuvens ao fundo e colorida de prédios remendados com massa fina em primeiro plano. Sem voltar os olhos a Diana, pergunta:

—E se o idealista souber da consequência antes, por isso não se submete ao canto da sereia?

Diana fecha os olhos, primeiro, depois abaixa a cabeça. Parece querer chorar ou ir embora.

— Se eu sonhasse com minha mãe, ela ia me dizer: “A vida é um teatro e você deve saber a hora de interpretar esse ou aquele personagem, o segredo é fazer tudo isso sem jamais esquecer sua verdadeira identidade. O segredo é fazer tudo isso e arcar com as consequências dos atos de seus personagens, sem esquecer quem você é de verdade”. Agora, eu te pergunto, Renato, sabendo que, no íntimo, você não é o personagem, como sofrer suas dores sem uma boa e espontânea dose de autopiedade?

Renato pensa de cabeça baixa. Diana o observa com certa pena, como se ele fosse alguém desolado diante dos cacos do seu entendimento da vida, tentando encontrar um novo jeito de montá-los. De repente, ele levanta a cabeça e, com ar abstrato, solta:

—E se o idealista for o personagem e não a pessoa de verdade?

Diana ri. A mágoa se desfaz, como gases em contato com simeticona. Pensa, “Uma pergunta pode esclarecer mais dúvidas do que qualquer resposta”, e percebe que ela e o namorado, no fim das contas, sempre se entenderam...

— É por isso que te amo tanto — ela responde.

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Um conto, dois tontos e a roda da fortuna

Por Wagner Hilário

Podia gritar aos quatro cantos que lugar de vagabundo era na cadeia e que não tinha esse papo de dó, nem de direitos humanos. Podia...

Podia coçar o saco sentado na cadeira, com os pés em cima da mesa feita de jacarandá; sorriso demagogo nos lábios, boca aberta, porque, ali, do jeito que’tava, não tinha risco de mosca entrar.

Podia, quando não estava contando as cifras ou tendo uma grande sacada para enricar ainda mais, sempre às custas dos outros, ficar admirando a grandiosidade de sua sala, os diplomas comprados e as fotos solenes nas paredes, com ele, todo-todo, cara de tonto e faixa brilhosa no peito. Podia tudo, ou quase tudo, amigo.

Podia se dar ao luxo de escrotar quem estava abaixo, até porque eram poucos os que estavam acima. Mas, como diz o nego veio sábio, o mundo dá vorta, cambaioteia, o que’tava no cocuruto, de repente, vai parar no pé e vira raspa de pele com cheiro de chulé.

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

A estupidez mais estúpida que um homem pode cometer

por Wagner Hilário

Sou pai e a notícia de que um pai, em Goiânia, matou seu próprio filho me desolou demais. A razão pela qual o crime se deu anabolizou consideravelmente minha desolação: divergências ideológicas. O moleque se afinava à esquerda, ia além, era anarquista, defendia a bandeira das minorias, algo que é de se esperar de um jovem. Conservadorismo, geralmente, é coisa de velho.

Até por isso, divergência entre pai e filho sobre questões políticas é comum, normal, entra na lista dos conflitos geracionais e, normalmente, trazem tensão, mas, com o tempo, deixa saldo positivo. Ambos costumam aprender muito nesse processo. Da minha parte, em minha experiência, pelo menos, foi assim. Conheço inúmeras outras experiências de amigos, colegas, conhecidos e a maioria delas se assemelha à minha.

Por isso, não tenho a menor dúvida de o caso do jovem Guilherme da Silva Neto, morto pelo pai, que, logo depois de matá-lo, caindo em si sobre a estupidez mais estúpida que um homem pode cometer, suicidou-se, é um ponto fora da curva, mas que merece ser estudado com profundidade.

A gota d’água para o pai de Guilherme “Irish”, como se autodenominava o jovem de 20 anos que estava no primeiro ano do curso de Matemática, foi a decisão do filho de se juntar a um grupo que havia invadido uma escola pública na capital do estado de Goiás. Foi no caminho para a escola que o pai emboscou o filho e se emboscou também.

Está claro, para mim, que o problema psicológico do pai desse garoto, o engenheiro Alexandre José da Silva Neto, era muito mais sério do que os olhos da sociedade, mesmo a contemporânea, são capazes de enxergar. Até porque, ainda são poucos os que consideram estranho um pai que tenta doutrinar seu filho, usando, para isso, se for o caso, a força bruta.

Algo diferente dessa linha é, muitas vezes, visto como falta de pulso, o que explicaria “o mundo estar como está”; como se, de fato, tivesse estado em melhor condição no passado. Quem pensa dessa forma, com todo o respeito, toma o mundo pelo próprio umbigo, toma-o por memórias afetivas que, embora valiosas para o indivíduo, têm pouco valor sociológico.

“O mundo muda o tempo todo” e as pessoas são diferentes, querer que tudo siga inalterado e que as pessoas sejam todas iguais é que um problema, não o contrário. Perigo maior do que alguém querer ser quem, de fato, é, mesmo que seja diferente das referências mais familiares, é obrigar alguém a ser como desejamos que seja.

Paternidade ou maternidade não é termo de posse. Não duvide que, por um breve instante, o pai desse menino acreditou que, ao tentar controlá-lo, estava tentando proteger o filho. Porém, ao se descobrir o assassino do menino, deu-se conta de que, na verdade, estava tentando controlar o que a sociedade diria de alguém que ele julgava possuir. Algo que era dele não podia expô-lo a tal vergonha pública. Ao constatar a verdadeira causa, descobriu o tamanho de sua própria miséria.

Quando se fala da relação entre pessoas, não existe propriedade, o flagelo da escravidão nos ensina. Quando se fala da relação entre pessoas, a palavra é compreensão e, se não der para compreender, aceitação. Quando há aceitação, as portas do diálogo se abrem e as da estupidez se fecham. Mas só se aceita alguém quando o amor prevalece sobre seu irmão siamês: a posse.

Guilherme Irish não é, nem pode ser o mártir da causa da esquerda, nem das minorias oprimidas, é muito mais do que isso: é a prova de que, quando se trata de gente, não há lugar para a posse. Ou se ama, ou se ama.

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

O brilho atormentado de um olhar familiar

por Wagner Hilário

Gostava de desenhar com estilete em seu próprio pulso. Tinha motivos para isso. Não tinha coragem de revelar tudo nas gravuras que fazia, nem de levar ao fundo da carne suas “pinceladas”, também não queria mais se lembrar do que insistia em sair dos porões da memória para assombrá-la em seu quarto, que ainda guardava o papel de parede da infância e algumas bonecas, amuletos de afeto que não deixavam a “menina” perder a esperança em si mesma.

Demorou a se convencer de que a culpa não era dela. A descoberta de que a vida não é um terreno seguro é dolorosa para qualquer um, mas, nalguns casos, esse rito de passagem vem no brilho atormentado de um olhar conhecido, empunhando uma arma com a boca do cano beijando sua testa e dizendo:

— Tira a calcinha.

Dele, só se vê os olhos e os lábios; o resto da face assustadora se esconde sob um capuz escuro, só menos escuro que sua voz familiar. O que é familiar não deveria assustar ninguém, jamais. O que é familiar também não deveria ser denunciado.

A descoberta de que a vida não é um terreno seguro também serve para rever conceitos.

Foi preciso tempo e a dolorosa reincidência da boca fria do maldito, agora sem capuz, para ela entender que o papel de parede tinha se desbotado, que só amuletos não seriam capazes de protegê-la, que o mal também poderia ser familiar e que ninguém mais a faria se sentir culpada só por ser mulher, ninguém.

Foi preciso tempo e ele veio e ela pôde, enfim, fazer a arma virar algema, pôde cuspir a verdade no rosto do canalha e revelar a ele a porca realidade que havia concebido.