segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Monólogo de um penitente

por Wagner Hilário

— A ignorância é uma dádiva às vezes autoconcedida, às vezes filha das circunstâncias, noutras imposta por alguém.

— Essa frase é prova da sua ignorância.

— O fato é que a ignorância num primeiro momento parece sempre mais conveniente. Isso porque a irracionalidade é bem mais forte que a razão. É confortável. Dá-nos a sensação de onipotência. Ela ignora o tempo. É tudo presente e o presente é só seu. O futuro é fugidio, liso. O passado pode não ser saudoso, então é melhor que não seja.

— Nada disso, cê tá confundindo o cego com o ignorante. Tô falando do pior cego, aquele que não quer ver. O ignorante não sabe. O cego que não quer ver sabe.

— A irracionalidade não enxerga um palmo à frente do nariz e ainda assim nos dá a falsa impressão de que sabemos tudo. Quem sabe tudo, pode tudo. É o canto da sereia.

— Cê tá me ouvindo?

— No plano da razão, a dúvida é a maior certeza. Duvidar é doloroso, e quem duvida é chato. O caminho da razão é infinito, caleja, ninguém sabe se salva e a recompensa é a iluminação. A razão é um oásis disfarçado de deserto. Poucos têm coragem de explorar o deserto.

— É surdo, você!

— A mente é o elo, muitas vezes perdido, entre a carne e o espírito. A segunda gaveta da mente é maior, mais bagunçada e fantástica que a primeira. Chama-se inconsciente. A outra, a primeira, é o consciente. Essa é bem mais rasa, normalmente, embora quanto maior seja melhor será. Ela guarda aquilo que julgamos mais construtivo à nossa alma. Alguns dos “utensílios” lá encontrados foram tirados da segunda gaveta.

— Acho melhor parar por aí. Vão descobrir que cê é ignorante.

— Um espírito saudável é aquele que consegue estabelecer uma relação equilibrada e harmoniosa entre o inconsciente e o mundo externo. Quem articula esses dois mundos é o consciente. Essa harmonia é o que podemos chamar sabedoria.

— Onde cê pretende chegar?

— Onde tudo começou.

— Onde cê tava esse tempo todo?

— Onde cê queria que eu ‘tivesse? Submerso em seu inconsciente, claro. Você me embriagou do dinheiro ganhado aos montes, das mulheres comidas como num oceano de orgia, das drogas consumidas, da fama fugaz e fútil que o mundo lhe deu e que suas carências consumiram sem moderação. Nada lhe adiantou, nem a educação que recebeu nem as centenas ou milhares de livros que leu. Nem os exemplos dos amigos desalmados. Você correu do entendimento. Você não quis lançar luz sobre suas trevas-lembranças porque preferia ignorá-las. Ignorava que se cegar pelo que não se quer ver é potencializar no futuro a desgraça que já passou. Se não ignorasse o desejo de se autocegar, enxergaria. É melhor chorar o leite derramado e limpá-lo que rir de ignorância no presente e matar e morrer de loucura no futuro.

— Para de falar, Desgraçado! Não tá vendo que tá tudo acabado. Chegou tarde. Eu já matei e agora o que eu fui morreu com ela. Restou-me só você.

— E a liberdade. A liberdade de ir pra onde quiser. Não há sequer quem desconfie de você. Sujeito rico, bem relacionado e respeitado. Nessa ordem, porque é nessa ordem que as pessoas enxergam. É bem mais difícil que as pessoas respeitem um homem pobre sem amigos influentes.

— Uma hora a polícia descobre.

— Só se for numa sessão espírita. Você pulverizou todas as provas, a vítima, todos os “arquivos”. Todos têm certeza que o assassino tá morto. O inquérito foi encerrado. Os moralistas ainda a chamam de vadia. Dizem que não devia ter se metido com quem se meteu, que se deixou meter por quem não devia... Dizem que tá tudo mais do que explicado. Justiça feita, por linhas tortas, como gosta Deus. É isso que dizem.

— Então vai embora.

— Já fui, há muito tempo. Antes de matar essa moça e todo mundo que cê matou, já havia me matado. Se eu tivesse vivo, não o deixaria fazer isso. Essa voz que você escuta não é senão meu fantasma.

— Então, vai embora, fantasma! Não guento mais ouvir sua voz.

— Isso eu não posso fazer por você. Enquanto existir, eu serei sua companhia. Vou funcionar como eco dos seus feitos, brilhantes e opacos.

— Meu Deus! Isso tem cura?

— Confessa tudo e aguenta na pele o que você não quer aguentar na consciência. Assim, eu ressuscito, deixo de ser fantasma e posso ajudar você. Garanto que na pele dói menos que na alma.

— Você é bandido, rapaz! É isso que cê quer, né? Nunca! Nunca! Ouviu?