domingo, 18 de dezembro de 2016

Se eu fosse apenas...

por Cecília Meireles

Se eu fosse apenas uma rosa,
com que prazer me desfolhava,
já que a vida é tão dolorosa
e não te sei dizer mais nada!

Se eu fosse apenas água ou vento,
com que prazer me desfaria,
como em teu próprio pensamento
vais desfazendo a minha vida!

Perdoa-me causar-te a mágoa
desta humana, amarga demora!
— de ser menos breve do que a água,
mais durável que o vento e a rosa...


Da obra “Cecília — Antologia Poética”
Global Editora/Edição 2013 – SP


Encontrei esse poema de Cecília Meireles e me encantei com seu caráter singelo e profundo. Os versos são lindos e tornam a intimidade doída que revela ainda mais afiada e aguda.

sábado, 10 de dezembro de 2016

À dureza do arado e da semeadura, a esperança da colheita

por Wagner Hilário

Recebi, dia desses, pelo WhatsApp, de um primo, vídeo falando sobre a importância de arar a terra. Por que se ara a terra? Ora, porque, assim como a gente, a terra fica mais sensível, mais fértil, mais receptiva à semeadura quando está ferida. Arar é rasgar, ferir a terra; é descompactá-la, porque, compactada, não entra nem água, que dirá semente. Arar é amolecê-la, é abri-la para que seja capaz de renascer em frutos, verduras, legumes e flores. Arar é revirar, tirar da zona de conforto, deixar vulnerável para a vida, porque a dureza e a insensibilidade não nutrem nada, nem ninguém.

O vídeo me fez pensar que vivemos hoje, no Brasil, um momento de arado. A vida inteira, eu escutei que estávamos fadados a ser gentinha em uma terra maravilhosa. A vida inteira, ouvi dizer que essa terra era para poucos e insensíveis senhores que nada têm a ver com os nossos sonhos. A vida inteira, eu discordei do fatalismo desse papo furado, embora concordasse que, circunstancialmente, a terra estava nas mãos dos tais senhores insensíveis; senhores que precisavam ser arados. O fato é que continua nas mãos deles, mas eu continuo a discordar do fatalismo da sentença: as coisas estão mudando, esses senhores estão sendo arados; nossa terra está sendo revirada pelo tempo e pelos valores democráticos que, pouco a pouco, conseguimos compreender com mais clareza.

É normal que alguns insistam em analisar o Brasil sem considerar a perspectiva histórica, que vejam os episódios recentes como a prova de que estamos perdidos, mas estou certo de que estão errados: o Brasil está se encontrando.

O termo “estado democrático de Direito” foi muito mal gasto nos últimos tempos. Nós nunca o tivemos, por aqui, na acepção estrita do termo. Vamos começar a tê-lo agora. É fundamental termos em mente que, até a década de 1990, nós, sequer, tínhamos leis anticorrupção. A gestão pública no Brasil era uma enorme caixa preta e, só por isso, não podemos afirmar, com absoluta certeza, que se roubou mais, o País, no período da ditadura militar e nos anos anteriores do que se rouba agora. O que se pode dizer, porém, com convicção, é que hoje, mais do que antes, a gente sabe que está sendo roubado e que os velhos suspeitos, de fato, são os culpados.

Recentemente escutei uma especialista da Unesp dizer, na rádio, exatamente isso. Ela ainda completou dizendo que, na década de 1990, com as normas de combate à corrupção — que devem ser aprimoradas ao longo do tempo —, o Brasil estabeleceu seu sistema de prevenção à corrupção. A segunda etapa passava pelo aprimoramento do sistema de monitoramento, ou seja, pelos organismos responsáveis por zelar pelo sistema preventivo. Estamos falando do Ministério Público (MP), da Polícia Federal (PF) e do Judiciário.

Esses organismos existem há muito, mas seu comando e corpo mudam ao longo do tempo. Gerações, que não entendem por que a prática é tão diferente da teoria, chegam a postos importantes nesses órgãos e resolvem fazer valer o poder que têm. Pessoas, menos preocupadas em serem bem pagas para ficarem quietas do que dispostas a entrarem para a história por terem feito algo diferente dos seus antecessores, aparecem e pronto: temos um novo cenário, que a maioria dos analistas, da grande mídia ou de redes sociais, insiste em interpretar com cabeça velha.

A Lava-Jato, eu estou certo, não é uma ação político-partidária, mas o símbolo de uma mudança que vai muito além e envolve muito mais pessoas do que um ou outro policial, procurador ou magistrado, até porque o indivíduo, só, é frágil e pode se perder em vaidade e egolatria. Vive-se, no País, algo maior, de natureza coletiva. Está em curso um processo de aprofundamento do estado democrático de Direito, em que o Judiciário, bem remunerado e repleto de regalias pessoais, é bom que se diga, deixa de ser mero avalista de nossos “reis e nobres”, para ser, de fato, o terceiro poder. Essa transformação, que não se dá sem conflitos, nem traumas, abre espaço para que, enfim, tenhamos parlamentares e executivos eleitos que, verdadeiramente, representem o povo, para que o Brasil passe a ser, como nunca em sua história, nosso.

O Brasil está sendo, em outras palavras, arado e será novamente arado quantas vezes Deus quiser. A nós, cabe, em primeiro lugar, semearmo-nos a nós mesmos com novas, boas e justas ideias e, em segundo, semear o País com o que há de melhor em nós. Assim, colheremos, finalmente, o futuro que sonhamos a cada novo presente.

sábado, 3 de dezembro de 2016

Frutos Amargos

por Wagner Hilário

É cedo para colher os frutos da dor,
mas eles precisarão ser colhidos.
Nada pode ser em vão na vida.
No coração do poeta,
cada sentimento tem muitos sabores;
por mais amargo que sejam alguns,
terão sempre o doce do verso,
os nutrientes do verbo,
a verve — combustível necessário
para seguirmos em frente, sempre

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Só me faça um favor na vida...

por Wagner Hilário

— Só me faça um favor na vida, filho, não tenha dó de si mesmo.

A figura do pai, já falecido, revisitando-o em sonho, com aquela frase que nunca lhe havia dito, mas que seria sua cara dizer, não deixou dúvida a Renato de que tinha de lamentar menos e realizar mais. Mesmo com os exemplos que via no dia a dia, de pessoas progredindo ao se fazerem de coitadas, seu inconsciente, com a gravidade da voz paterna, dizia para não ceder à tentação, não se entregar ao canto da sereia da autopiedade.

— Seja o forte, não o fraco que vence pela dó do outro — completa o pai, que preserva, no sonho, os olhos inchados do álcool que bebia em vida, a barba mal feita, os perdigotos que soltava enquanto falava e os lábios vermelhos intensos, características herdadas pelo filho.

Os orientais sempre disseram que é difícil discernir entre o que é, de fato, mundo palpável e o que é fruto da nossa imaginação. Essa dúvida, por aquelas bandas, é tão forte que já se crê, por lá, que, muitas vezes, não há diferença entre o que se imagina e o que existe. É comum dizerem que, na realidade, só existe o que se imagina. Exagero, sem dúvida. Mas também é exagero, pensa Renato, acreditar que se é capaz de discernir com clareza esses dois mundos. “Como não se pode duvidar que a realidade que vemos não é, na verdade, fruto da imaginação?”, pergunta enquanto escuta a namorada Diana comentar seu sonho.

— Que delírio! — Diz ela. — ‘Cê podia ter sonhos mais úteis.

— O abstrato é um terreno mais fácil pra mim.

— Vai morrer solteiro e de cirrose, então.

— Não estou longe disso, mas você e todo o seu pragmatismo também não. Ou acha que ainda é uma mocinha de 25 anos e que aquela branquinha ali é H2O?

Diana não gostou do que disse o namorado, mas procura não demonstrar que acusou o golpe. Acende um cigarro, que combina com suas olheiras e os dentes levemente amarelados, e começa a falar de darwinismo social.

— Vinga na vida o que melhor se adapta à realidade, não o mais forte, ainda mais quando o conceito de força está em se manter leal às próprias ideias. — Para finalizar seu discurso, ela devolve o ataque... — Idealistas, como você, são os maiores covardes do mundo.

— ‘Tá exagerando na ofensa.

— ‘Tô falando sério, é o que penso.

— Não disse que ‘tava brincando, falei da ofensa... Por que são os maiores covardes?

— Porque têm medo da batalha. Querem colocar um monte de regras, porque sabem que, com essas regras, a vitória é certa. A vida não tem regra, tem consequência. A consequência é a regra da vida.

Renato olha nos olhos escuros de Diana, que contrastam com seus cabelos loiros-brancos de química: há mágoa. A voz dela em seu discurso inspirado, ao ponto de confundir Renato, saiu entrecortada. Ele interpretou a voz embargada como uma demonstração de carinho incomodado. Toda mágoa tem um toque de carinho. Renato olhou pela janela do quarto, cinza de nuvens ao fundo e colorida de prédios remendados com massa fina em primeiro plano. Sem voltar os olhos a Diana, pergunta:

—E se o idealista souber da consequência antes, por isso não se submete ao canto da sereia?

Diana fecha os olhos, primeiro, depois abaixa a cabeça. Parece querer chorar ou ir embora.

— Se eu sonhasse com minha mãe, ela ia me dizer: “A vida é um teatro e você deve saber a hora de interpretar esse ou aquele personagem, o segredo é fazer tudo isso sem jamais esquecer sua verdadeira identidade. O segredo é fazer tudo isso e arcar com as consequências dos atos de seus personagens, sem esquecer quem você é de verdade”. Agora, eu te pergunto, Renato, sabendo que, no íntimo, você não é o personagem, como sofrer suas dores sem uma boa e espontânea dose de autopiedade?

Renato pensa de cabeça baixa. Diana o observa com certa pena, como se ele fosse alguém desolado diante dos cacos do seu entendimento da vida, tentando encontrar um novo jeito de montá-los. De repente, ele levanta a cabeça e, com ar abstrato, solta:

—E se o idealista for o personagem e não a pessoa de verdade?

Diana ri. A mágoa se desfaz, como gases em contato com simeticona. Pensa, “Uma pergunta pode esclarecer mais dúvidas do que qualquer resposta”, e percebe que ela e o namorado, no fim das contas, sempre se entenderam...

— É por isso que te amo tanto — ela responde.

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Um conto, dois tontos e a roda da fortuna

Por Wagner Hilário

Podia gritar aos quatro cantos que lugar de vagabundo era na cadeia e que não tinha esse papo de dó, nem de direitos humanos. Podia...

Podia coçar o saco sentado na cadeira, com os pés em cima da mesa feita de jacarandá; sorriso demagogo nos lábios, boca aberta, porque, ali, do jeito que’tava, não tinha risco de mosca entrar.

Podia, quando não estava contando as cifras ou tendo uma grande sacada para enricar ainda mais, sempre às custas dos outros, ficar admirando a grandiosidade de sua sala, os diplomas comprados e as fotos solenes nas paredes, com ele, todo-todo, cara de tonto e faixa brilhosa no peito. Podia tudo, ou quase tudo, amigo.

Podia se dar ao luxo de escrotar quem estava abaixo, até porque eram poucos os que estavam acima. Mas, como diz o nego veio sábio, o mundo dá vorta, cambaioteia, o que’tava no cocuruto, de repente, vai parar no pé e vira raspa de pele com cheiro de chulé.

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

A estupidez mais estúpida que um homem pode cometer

por Wagner Hilário

Sou pai e a notícia de que um pai, em Goiânia, matou seu próprio filho me desolou demais. A razão pela qual o crime se deu anabolizou consideravelmente minha desolação: divergências ideológicas. O moleque se afinava à esquerda, ia além, era anarquista, defendia a bandeira das minorias, algo que é de se esperar de um jovem. Conservadorismo, geralmente, é coisa de velho.

Até por isso, divergência entre pai e filho sobre questões políticas é comum, normal, entra na lista dos conflitos geracionais e, normalmente, trazem tensão, mas, com o tempo, deixa saldo positivo. Ambos costumam aprender muito nesse processo. Da minha parte, em minha experiência, pelo menos, foi assim. Conheço inúmeras outras experiências de amigos, colegas, conhecidos e a maioria delas se assemelha à minha.

Por isso, não tenho a menor dúvida de o caso do jovem Guilherme da Silva Neto, morto pelo pai, que, logo depois de matá-lo, caindo em si sobre a estupidez mais estúpida que um homem pode cometer, suicidou-se, é um ponto fora da curva, mas que merece ser estudado com profundidade.

A gota d’água para o pai de Guilherme “Irish”, como se autodenominava o jovem de 20 anos que estava no primeiro ano do curso de Matemática, foi a decisão do filho de se juntar a um grupo que havia invadido uma escola pública na capital do estado de Goiás. Foi no caminho para a escola que o pai emboscou o filho e se emboscou também.

Está claro, para mim, que o problema psicológico do pai desse garoto, o engenheiro Alexandre José da Silva Neto, era muito mais sério do que os olhos da sociedade, mesmo a contemporânea, são capazes de enxergar. Até porque, ainda são poucos os que consideram estranho um pai que tenta doutrinar seu filho, usando, para isso, se for o caso, a força bruta.

Algo diferente dessa linha é, muitas vezes, visto como falta de pulso, o que explicaria “o mundo estar como está”; como se, de fato, tivesse estado em melhor condição no passado. Quem pensa dessa forma, com todo o respeito, toma o mundo pelo próprio umbigo, toma-o por memórias afetivas que, embora valiosas para o indivíduo, têm pouco valor sociológico.

“O mundo muda o tempo todo” e as pessoas são diferentes, querer que tudo siga inalterado e que as pessoas sejam todas iguais é que um problema, não o contrário. Perigo maior do que alguém querer ser quem, de fato, é, mesmo que seja diferente das referências mais familiares, é obrigar alguém a ser como desejamos que seja.

Paternidade ou maternidade não é termo de posse. Não duvide que, por um breve instante, o pai desse menino acreditou que, ao tentar controlá-lo, estava tentando proteger o filho. Porém, ao se descobrir o assassino do menino, deu-se conta de que, na verdade, estava tentando controlar o que a sociedade diria de alguém que ele julgava possuir. Algo que era dele não podia expô-lo a tal vergonha pública. Ao constatar a verdadeira causa, descobriu o tamanho de sua própria miséria.

Quando se fala da relação entre pessoas, não existe propriedade, o flagelo da escravidão nos ensina. Quando se fala da relação entre pessoas, a palavra é compreensão e, se não der para compreender, aceitação. Quando há aceitação, as portas do diálogo se abrem e as da estupidez se fecham. Mas só se aceita alguém quando o amor prevalece sobre seu irmão siamês: a posse.

Guilherme Irish não é, nem pode ser o mártir da causa da esquerda, nem das minorias oprimidas, é muito mais do que isso: é a prova de que, quando se trata de gente, não há lugar para a posse. Ou se ama, ou se ama.

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

O brilho atormentado de um olhar familiar

por Wagner Hilário

Gostava de desenhar com estilete em seu próprio pulso. Tinha motivos para isso. Não tinha coragem de revelar tudo nas gravuras que fazia, nem de levar ao fundo da carne suas “pinceladas”, também não queria mais se lembrar do que insistia em sair dos porões da memória para assombrá-la em seu quarto, que ainda guardava o papel de parede da infância e algumas bonecas, amuletos de afeto que não deixavam a “menina” perder a esperança em si mesma.

Demorou a se convencer de que a culpa não era dela. A descoberta de que a vida não é um terreno seguro é dolorosa para qualquer um, mas, nalguns casos, esse rito de passagem vem no brilho atormentado de um olhar conhecido, empunhando uma arma com a boca do cano beijando sua testa e dizendo:

— Tira a calcinha.

Dele, só se vê os olhos e os lábios; o resto da face assustadora se esconde sob um capuz escuro, só menos escuro que sua voz familiar. O que é familiar não deveria assustar ninguém, jamais. O que é familiar também não deveria ser denunciado.

A descoberta de que a vida não é um terreno seguro também serve para rever conceitos.

Foi preciso tempo e a dolorosa reincidência da boca fria do maldito, agora sem capuz, para ela entender que o papel de parede tinha se desbotado, que só amuletos não seriam capazes de protegê-la, que o mal também poderia ser familiar e que ninguém mais a faria se sentir culpada só por ser mulher, ninguém.

Foi preciso tempo e ele veio e ela pôde, enfim, fazer a arma virar algema, pôde cuspir a verdade no rosto do canalha e revelar a ele a porca realidade que havia concebido.

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Sobre distâncias e estrelas

por Wagner Hilário

Escrito na tarde do dia 26 do outubro de 2016

Memes, vídeos, fotos, textões, emotions, emoções e lágrimas, mesmo. Tem pra todos os gostos, tem de tudo: política, piada de time, de mau gosto, de gosto bom, riso frouxo, mulher pelada, pornô, tem bom-dia, ironia, maldade, acidez, tem saudade também... Se notícia ruim chega rápido desde que se leva carta a jegue, imagine agora, quando a estrada é feita de “zap-zap”.

Digo isso porque a eterna criança da família, aquele que sempre foi muito mais up do que down, se foi no meio desta manhã e eu, mesmo distante dele, por causa dessa vida doida que arrumei pra mim e que não me dá tempo pra saudade, fui informado disso, por essa modernidade faladeira, antes mesmo que o sol chegasse ao zênite, antes do meio-dia.

Foi assim, tio Nito, que eu soube que você foi parar no topo do céu... E é mais ou menos assim que eu também lhe peço para dar um beijo na ’vó e na turma toda aí. Eu lhe peço que ore por nós. Aqui embaixo, estamos tão dedicados a “vencer na vida” e fugir dela, ao mesmo tempo, olhando para telas disso e daquilo, que perdemos a oportunidade e a alegria de admirar o brilho e a beleza de estrelas como você, que, por toda uma vida, esteve tão perto.

terça-feira, 4 de outubro de 2016

As janelas de Criscent

por Wagner Hilário

— Quanto vale poder ver? — Pergunta o homem, que vai sentado, à frente, no banco de passageiro, ao motorista.

— Tanto quanto poder falar — responde o motorista, rindo e observando o menino de óculos, inebriado, olhando, à esquerda, pela janela do banco traseiro.

O pequeno Criscent Bwambale não sabia, tampouco imaginava que um dia seria possível, mas, quando viu as montanhas de Rwenzori e seus vales verdes de verdade, descobriu, enfim, que poucas coisas eram tão capazes de calar alguém como a visão de algo revelador.

Ao lado do silente Criscent, está sua avó. O silêncio também é companhia frequente dela, desde sempre. Afinal, em sua terra, às mulheres, não é dado, muito, o direito à fala. Por isso, talvez, também nunca lhe pôde ser negado o direito a ver e enxergar cenários e cenas reveladoras. Compensação natural.  O tempo e as revelações assustadoras, porém, tiraram-lhe, ao menos em parte, o encantamento com que já vira e com que gostaria de ver, para sempre, o mundo.

Tiraram-lhe, “ao menos em parte”, vale frisar, porque, agora, ao lado do neto, seu encantamento com o pequeno é visível no sorriso que se expressa não apenas em seus lábios, mas também em seus olhos. Ela cuida do menino, desde que nasceu. Cuida dos irmãos dele também, já que os pais passam a maior parte do tempo trabalhando nas plantações de cacau do vilarejo de Bundibugyo, noroeste de Uganda, onde vivem.

No carro, observando o neto, absorto na paisagem que se descortina inédita aos seus olhinhos, ela se lembra do dia em que uma moça, de olhos de mar e pele de areia, apareceu na porta da sua casa, dizendo ser médica e que queria examinar o menino. A lembrança da jovem, voluntária da ONG Sightsavers, encanta-a agora. Porém, na época, os olhos claros da moça a assustaram, até porque não sabia, ao certo, o que pretendiam fazer ao seu menino. Hoje, ela sabe...

Estima-se que, nos países em desenvolvimento, há 18 milhões de pessoas que vivem com cegueira evitável. Criscent nasceu com catarata nos dois olhos, o que lhe permitia enxergar apenas vultos e pontos luminosos. O que via era, sem dúvida, insuficiente para dar-lhe qualquer tipo de autonomia. Dependia da avó e dos parentes para quase tudo. Para seus familiares, Criscent nascera cego e morreria cego.

Porém, dias depois da visita da moça da ONG à casa de Criscent, em um hospital de Mbarara, cidade a sudoeste de Uganda e a quase 300 quilômetros de seu vilarejo, o menino foi submetido a uma cirurgia e, dois meses depois, cumprido o tempo de recuperação do procedimento, o médico Nelson Chaw lhe tirou a venda e lhe colocou óculos, com lentes levemente escuras. As janelas de Criscent, assim, foram abertas para o mundo: ele via, via as mãos hábeis de Chaw, o rosto mágico de sua avó e, mais tarde, as montanhas de Rwenzori.

Na vila de Bundibugyo, Criscent chega, depois da encantadora viagem, e é recebido como rei pelos irmãos e primos, que, a partir de agora, têm a missão de lhe apresentar o mundo e seus detalhes... São tantos, que o menino não sabe nem por onde começar. Começa, então, pelo afeto: descobre, pela voz, a prima de que mais gosta e corre na direção dela. Em seus braços, entrega seus olhos aos traços de seu rosto, hipnotizado por um amor infantil que, só agora, é capaz de enxergar.

Depois, volta-se para o todo a ser desbravado e, tragado pela cor rosa da flor, aponta em sua direção. Ele queria falar, mas desconhece palavra que signifique a mais nova descoberta de seus olhos recém-nascidos. Sua prima o leva, no colo, para que possa ver a flor de perto, para que possa tocá-la, como fazia quando não via, e, assim, recordar-se, dela, pelo tato.

A nova vida de Criscent está só começando. Logo, ele transformará encantamento em conhecimento e substituirá silêncio por palavras. Quem sabe suas palavras não se tornem mais um motivo de encantamento para a sua avó? Com certeza, ela está orgulhosa ao vê-lo brincar com as outras crianças, ao vê-lo correr atrás delas, enxergando, enfim, o que deseja tocar.

Com certeza, Criscent sabia, antes de terem-lhe limpado a cegueira, o que era brincar: ele nunca precisou ter visão para poder desfrutar desse encantamento. Porém, agora, que pode ver, brincar é bem diferente. Agora, sua avó pode escutar e ele pode dizer, com conhecimento “de vista”, em alto e bom som, enquanto corre atrás dos amigos, que...

— Nunca havia brincado assim antes!

Publicada pela BBC Brasil em julho deste ano (http://www.bbc.com/portuguese/internacional-36749845), a história do menino Criscent Bwambale me emocionou e me inspirou a escrever esta pequena crônica, acrescentando, à realidade noticiada, uma dose de imaginação.

sexta-feira, 10 de junho de 2016

Força maior

por Wagner Hilário

Olhou o diagnóstico do trânsito astrológico do dia; haveria equilíbrio e serenidade em seu íntimo. Emoção e razão andariam de mãos dadas; Mercúrio e Lua formavam um aspecto harmonioso entre si, um trígono. Assim, estaria inspirado para ouvir e aconselhar com sensatez. Mais ciente de si, de seus sentimentos, o dia era especialmente favorável para a relação com as mulheres. Pensou: “Seria ótimo, se eu não fosse feio, nem gago”.

segunda-feira, 16 de maio de 2016

Outono

por Wagner Hilário

Apesar da estação,
ainda não vejo folhas secas.
Ouço, contudo,
o ruído do tempo
corroído por histórias
que, caídas das árvores,
já deveriam estar mortas
para fecundar, de inspiração,
desejos e,
enfim, dar vida
a novas histórias.

quinta-feira, 28 de abril de 2016

Sobre pilantras, perigosos e meias palavras

por Wagner Hilário

— Já dizia um velho ditado de alguma parte perdida do mundo: “Desconfie de um homem sem vícios”.
— E se o cara realmente for cheio de virtudes, qual o problema?
— Desconfie. Melhor um tirano “pré-confesso” do que com discurso democrático, deixando “o rabo da sua verdade” para ser descoberto só quando já for tarde.
— Mas, se o cara for tirano, nem lhe dou crédito.
— Por isso.
— O mentiroso é o problema, então?
— Principalmente, o que mente a si mesmo.
— Como assim?
— O pilantra que sabe que é pilantra esconde mal, porque não tem vergonha de ser pilantra.
— Mas, por aqui, esse é o "favorito", ‘tá com tudo, manda derrubar e dá aumento pra quem não tem mais nem de onde tirar. Esse é o que manda, esse é o perigoso de verdade.
— É não.
— Claro que é.
— Ele tem poder, mas os que mentem a si mesmos têm mais.
— Do que ‘cê ‘tá falando?
— Do sujeito que mente a si mesmo.
— Isso não me diz muita coisa. Quem é esse? Explica.
— Se você me prometer que não vai se identificar com ele, eu conto (rs).
— ‘Tá me estranhando?
— Bom... Perigoso é o sujeito que aparece menos e que usa os pilantras sabidos para fazer o trabalho sujo.
— Você meio que já disse isso. Me explica direito.
— Então, vai... Perigoso mesmo é o cara que dá corda aos pilantras que sabem que são pilantras. É o que diz: “vou usar esse pilantra porque ele tem estômago para fazer o trabalho sujo que precisa ser feito para o ‘nosso bem’”.
— ...
— Perigoso, mesmo, é aquele que, ao público, só mostra o que faz de limpo, mas, no íntimo, vale-se dos pilantras para derrubar outros perigosos, adversários que atrapalham seus planos e que também tentam se esconder atrás de outros pilantras. Perigoso é o que não julga, nem condena o pilantra sabido, porque o pilantra, como disse, é forte e vai lhe garantir aumento gordo, mesmo em tempos de crise. É o que defende, em discurso, as minorias, a maioria carente, a justiça social e, na socapa, embolsa grana pública para enricar a “causa”. Perigoso é quem não faz autocrítica; é o cara que, mesmo depois de tudo isso, ainda é capaz de acreditar, de verdade, que é "gente de bem" e que mereceu tudo o que tem. É desse cara que falo... Se identificou?

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Ser que sou

por Wagner Hilário

Sou sempre dúvidas,
mas, há dias,
em que sei ser, só,
decisão.
Queria ser sempre,
assim,
mas não sou, não.
Sou bicho do mato,
filho dos astros
e não é preciso razão,
nem Freud,
para eu ser
quem não quero.

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Ídolo de infância à venda

Por Wagner Hilário

Cedo, viu seu destino nas mãos: seu ídolo defendia, não atacava. Cedo, também, seus olhos murcharam: o herói partia, em cifra$. Como podiam valer mais que tanta história?

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Ciclo

por Wagner Hilário

De menino, queria ser livre; jovem, tentava ser; adulto, queria ser menino; velho, descobrira: só a morte livra. Ele preferia a vida, então.