segunda-feira, 7 de novembro de 2016

O brilho atormentado de um olhar familiar

por Wagner Hilário

Gostava de desenhar com estilete em seu próprio pulso. Tinha motivos para isso. Não tinha coragem de revelar tudo nas gravuras que fazia, nem de levar ao fundo da carne suas “pinceladas”, também não queria mais se lembrar do que insistia em sair dos porões da memória para assombrá-la em seu quarto, que ainda guardava o papel de parede da infância e algumas bonecas, amuletos de afeto que não deixavam a “menina” perder a esperança em si mesma.

Demorou a se convencer de que a culpa não era dela. A descoberta de que a vida não é um terreno seguro é dolorosa para qualquer um, mas, nalguns casos, esse rito de passagem vem no brilho atormentado de um olhar conhecido, empunhando uma arma com a boca do cano beijando sua testa e dizendo:

— Tira a calcinha.

Dele, só se vê os olhos e os lábios; o resto da face assustadora se esconde sob um capuz escuro, só menos escuro que sua voz familiar. O que é familiar não deveria assustar ninguém, jamais. O que é familiar também não deveria ser denunciado.

A descoberta de que a vida não é um terreno seguro também serve para rever conceitos.

Foi preciso tempo e a dolorosa reincidência da boca fria do maldito, agora sem capuz, para ela entender que o papel de parede tinha se desbotado, que só amuletos não seriam capazes de protegê-la, que o mal também poderia ser familiar e que ninguém mais a faria se sentir culpada só por ser mulher, ninguém.

Foi preciso tempo e ele veio e ela pôde, enfim, fazer a arma virar algema, pôde cuspir a verdade no rosto do canalha e revelar a ele a porca realidade que havia concebido.

Nenhum comentário: