segunda-feira, 26 de abril de 2010

Que seja pela última vez

por Sílvia Paladino

Parece mais humano do que inteligente sofrer de algumas paranoias. Umas mais crônicas, outras que se dissolvem aos solavancos de uma expiração mais áspera. Qualquer um está sujeito, afinal, a se perder da realidade de vez em quando, ou não?

Por volta das onze e tantas de uma noite comum da semana, dirigindo de volta para casa, Gabriela pouco enxergava através da janela do passageiro do carro, seja pela atenção ao volante, pelos vidros protegidos com insulfilm ou, mais provável, pela resistência tímida em encarar o estranho admirador que conduzia o automóvel ao lado. Pista expressa, poucos semáforos. Por alguns quilômetros, se fez passar por desentendida. Pouco mais adiante, passou mesmo foi o seu número de telefone.

– Me dá o seu celular? – arriscou o rapaz, agitando o seu próprio aparelho no ar.

Gabriela desceu o vidro elétrico (só até a metade) e, antes de dizer qualquer coisa, radiografou braços, mãos e rosto alheios. Nenhuma orelha de abano, aliança de compromisso ou tendências psicopatas. Ao contrário disso, surpreendeu-se ao mapear os cabelos de tom loiro escuro, com lisos fios acompanhando a longitude do pescoço; os ombros largos e fortes, expostos pela camiseta regata; o maxilar quadrado, feito os guerreiros da era medieval, ou pelo menos aqueles retratados no cinema; e o limitado espaço do Peugeot 206 para a sua estatura.

– Anota aí! – rendeu-se ela, ditando pausadamente cada dígito.

André tem um metro e noventa e três de altura, como disse precisamente à Gabriela no primeiro encontro, e ela se arrependeu por não ter optado por seu maior salto alto. Lamentou-se também pelo vestido nada apropriado para uma noite típica de verão e pouco sedutor — em seu julgamento — para um menino tão bonito: malha espessa e mangas na altura dos cotovelos; colo encoberto pela gola careta; e saia de comprimento nem charmoso, muito menos ousado, deixando apenas joelhos e panturrilhas à mostra. Gabriela decretou em pensamento: “Certeza que isso só vai durar uma noite”.

Aos seus vinte e sete anos e com gostos refinados, Gabriela, por outro lado, nunca se sentiu à vontade em jantares românticos à luz de velas, em relacionamentos mais adultos do que cômicos ou ao desabotoar as calças de um homem que “sabe como tratar uma mulher”. Encantou-se ainda mais com André quando este confessou ter vinte e dois anos, não entender nada de cervejas e não ter concluído formação superior, até então. Aos olhos de Gabriela, era quase perfeição: a pequena cicatriz no lábio superior, a força das mãos – às vezes, descontrolada — ao redor de sua cintura e as histórias sem qualquer glamour.

É evidente que Gabriela não acredita em príncipes. Exceto pela forma física de deuses humanizados na escultura grega — ou quase isso —, André não teria o menor talento para o papel. Mas, ao terceiro encontro, Gabriela queria mais é ser Gata Borralheira. Ela acharia graça ao vê-lo embarcar pela primeira vez em um avião, teria orgulho ao apresentá-lo a seus amigos de infância, contaria em tom de piada como haviam se conhecido — “Ah, eu o achei na rua!” — e revelaria gentilmente a ele o que mais a satisfaz. Ela o ajudaria no trabalho de conclusão de curso e até toleraria a molecagem da turma de amigos. Era tudo tão claro!

Mas o quarto encontro não aconteceu. André disse que ligaria no domingo, mas só apareceu na segunda-feira, culpando a chuva pela preguiça invencível. No sábado, Gabriela voltou mais cedo de viagem com plano traçado: eles assistiriam a um lançamento que, em situações comuns, ela jamais tocaria na prateleira da locadora; ficariam largados sobre o tapete da sala, entre travesseiros e almofadas coloridas, e fariam sexo ardente, porém sublime, ali mesmo. Perderiam o final do filme e dormiriam só perto do amanhecer. Mas André preferiu não contrariar a mãe, que queria o filhinho em casa. Chegado mais um final de semana, Gabriela tornou-se segunda, até terceira opção, atrás de compromissos importantes de André. Primeiro, ela questionou o que seria verdade ou mentira entre todas as desculpas. Mas o fato é que isso não fazia diferença. As duas respostas estavam erradas.

A ilusão de Gabriela teria virado prato principal do dia, mas foi esmagada como o alho que nem mais se percebe no arroz depois de cozido. E ela diz, novamente, que tal estupidez jamais irá se repetir.

Sílvia Paladino é jornalista, com pós-graduação em jornalismo literário, e publicou esse texto antes no blog narravidas.wordpress.com, onde é possível ler outros textos de sua autoria.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Sem palavras

por Wagner Hilário

Numa dessas manhãs
Quero ver se não me traio
Se não alimento meus nervos
Se não atraio a desgraça
De ser mais falível
Do que gostaria
Quero ver se hoje ainda
Sou o que sonho em ser adiante
Assim fica mais fácil seguir
Não, não será simples
Mas será melhor
A cada sempre
Porque sempre
A felicidade não é cômoda
É laboriosa
Recompensa invisível
Não é Vale do Silício
Mas vale a eternidade
Não vale um tostão furado
Mas é um baita negócio
Nem furo de reportagem vale
Mas é uma boa notícia
Que palavra nenhuma pode contar

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Perspectiva de arrebol

por Wagner Hilário

Lembro-me de ter ouvido algumas vezes a palavra arrebol, mas nunca me dispus a saber o que significava.

Nunca li, mas sempre ouvi a palavra arrebol empregada em trechos de músicas, poemas ou prosas bonitos. Bonitos talvez não seja a palavra. Alegres. Alegrinhos, melhor ainda. Pra mim, o trecho alegrinho sempre prejudicou o encanto do verbete, e eu me desinteressava dele.

Mas quando me dispus a conhecer o que quer dizer, abrindo o dicionário eletrônico, descobri também que a palavra pode ser menos bela que seu significado. Ou ainda, que sua feiura fonética pode virar beleza quando sabemos o que quer dizer.

Arrebol: “Vermelhidão do nascer ou do pôr do sol”, ensina o Aurélio. Estou ansioso pra ver, ansioso pra usar a palavra... Arrebol, sempre gostei de você, mas não sabia seu nome.