sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

A Carta


O texto abaixo é a carta escrita pelo líder indígena, Chefe Seattle, por volta de 1852 ao presidente norte-americano, à época provavelmente Millard Fillmore, em resposta ao pedido do governo dos Estados Unidos de compra de suas terras. A intenção do governo era dispor de terra para abrigar os imigrantes que vinham da Europa. A carta foi extraída do endereço http://www.culturabrasil.pro.br/campbell.htm, no qual está transcrita a entrevista feita pelo jornalista Bill Moyers com o mitólogo Joseph Campbell, que cita a carta do Chefe Seattle como “um dos últimos testemunhos da ordem moral paleolítica”.



por Chefe Seattle

O Presidente, em Washington, informa que deseja comprar nossa terra. Mas como é possível comprar ou vender o céu, ou a terra? A ideia nos é estranha. Se não possuímos o frescor do ar e a vivacidade da água, como vocês poderão comprá-los?

Cada parte desta terra é sagrada para meu povo. Cada arbusto brilhante do pinheiro, cada porção de praia, cada bruma na floresta escura, cada campina, cada inseto que zune. Todos são sagrados na memória e na experiência do meu povo.

Conhecemos a seiva que circula nas árvores, como conhecemos o sangue que circula em nossas veias. Somos parte da terra, e ela é parte de nós. As flores perfumadas são nossas irmãs. O urso, o gamo e a grande águia são nossos irmãos. O topo das montanhas, o húmus das campinas, o calor do corpo do pônei, e o homem, pertencem todos à mesma família.

A água brilhante que se move nos rios e riachos não é apenas água, mas o sangue de nossos ancestrais. Se lhes vendermos nossa terra, vocês deverão lembrar-se de que ela é sagrada. Cada reflexo espectral nas claras águas dos lagos fala de eventos e memórias na vida do meu povo. O murmúrio da água é a voz do pai do meu pai.

Os rios são nossos irmãos. Eles saciam nossa sede, conduzem nossas canoas e alimentam nossos filhos. Assim, é preciso dedicar aos rios a mesma bondade que se dedicaria a um irmão.

Se lhes vendermos nossa terra, lembrem-se de que o ar é precioso para nós, o ar partilha seu espírito com toda a vida que ampara. O vento, que deu ao nosso avô seu primeiro alento, também recebe seu último suspiro. O vento também dá às nossas crianças o espírito da vida. Assim, se lhes vendermos nossa terra, vocês deverão mantê-la à parte e sagrada, como um lugar onde o homem possa ir apreciar o vento, adocicado pelas flores da campina.

Ensinarão vocês às suas crianças o que ensinamos às nossas? Que a terra é nossa mãe? O que acontece à terra acontece a todos os filhos da terra.

O que sabemos é isto: a terra não pertence ao homem, o homem pertence à terra. Todas as coisas estão ligadas, assim como o sangue nos une a todos. O homem não teceu a rede da vida, é apenas um dos fios dela. O que quer que ele faça à rede, fará a si mesmo.

Uma coisa sabemos: nosso deus é também o seu deus. A terra é preciosa para ele e magoá-la é acumular contrariedades sobre o seu criador.

O destino de vocês é um mistério para nós. O que acontecerá quando os búfalos forem todos sacrificados? Os cavalos selvagens, todos domados? O que acontecerá quando os cantos secretos da floresta forem ocupados pelo odor de muitos homens e a vista dos montes floridos for bloqueada pelos fios que falam? Onde estarão as matas? Sumiram! Onde estará a águia? Desapareceu! E o que será dizer adeus ao pônei arisco e à caça? Será o fim da vida e o início da sobrevivência.

Quando o último pele vermelha desaparecer, junto com sua vastidão selvagem, e a sua memória for apenas a sombra de uma nuvem se movendo sobre a planície... estas praias e estas florestas ainda estarão aí? Alguma coisa do espírito do meu povo ainda restará?

Amamos esta terra como o recém-nascido ama as batidas do coração da mãe. Assim, se lhes vendermos nossa terra, amem-na como a temos amado. Cuidem dela como temos cuidado. Gravem em suas mentes a memória da terra tal como estiver quando a receberem. Preservem a terra para todas as crianças e amem-na, como Deus nos ama a todos.

Assim como somos parte da terra, vocês também são parte da terra. Esta terra é preciosa para nós, também é preciosa para vocês. Uma coisa sabemos: existe apenas um Deus. Nenhum homem, vermelho ou branco, pode viver à parte. Afinal, somos irmãos.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Yin e Yang

por Wagner Hilário

Poente púrpura
e laranja lava:
horizonte
rajado de Deus.

O céu se pinta
feito gueixa
pouco antes de se deitar.
Olhar pueril:
“O sol acendeu,
papai”.

Num dia-nuvens,
uma fresta
no pé oceânico
do firmamento
faz poesia se precipitar.

O encontro da luz
com as trevas:
fio de contrastes
sobre o qual
se deve equilibrar.

Máquina digital,
uma foto sem flash
para roubar a alma
deste instante-lugar.









segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

O retrato do carroceiro

por Wagner Hilário

A carne daquele carroceiro parecia pedra. Seus olhos não viam, miravam. A barba rala, rente, não tinha força para ir além, o que lhe conferia um asseio sem esforço. Com as costas apoiadas no muro, mastigava o caule de uma erva daninha tirada de uma rachadura na calçada. Forte, parecia deixar a carroça cheia de papelão descansar por alguns minutos, enquanto se dedicava a um misterioso trabalho intelectual.

Eu quis fotografar essa ideia. Desembainhei a máquina e disparei, sem fleche, aproveitando o quanto podia a luz frágil da tarde cinza. A imagem parecia feita de pó; um sutil chuviscado lhe dava um charme imperfeito. As cores eram discretas, como as roupas rotas daquele homem moreno feito terra fértil...

– Vai me expor sem pedir autorização?

As palavras do homem me agrilhoaram e antes que eu pudesse responder...

– O artista se julga sensível, mas sua sensibilidade raramente é altruísta. Quer realizar sua obra e colher as glórias que ela trará. Depois disso, os olhos do artista viram olhos da massa: o mendigo carroceiro ali exposto vira estorvo, vira cisco no olho.

Fez uma pausa para eu refletir sobre suas palavras, como se tivesse enfiado uma faca em meu ventre e a segurasse por alguns instantes para eu sentir ao máximo a chama da lâmina.

– Durante a mostra, os apreciadores se deleitarão com o seu talento, que conferirá à minha miséria uma riqueza redentora. Alguns talvez se comovam, sintam as carências do retratado, mas mesmo esses se esquecerão, pois não há nada que um bom vinho depois da exposição não cure... Não é o luxo que é um porre; é o porre que é um luxo.

– Que raio de gente é o senhor?

– O raio de gente que ninguém quer ser... Embora todos se queixem da opressão do mundo, ninguém quer ser o que defende. Queixam-se da boca pra fora. Ninguém tem coragem de encarar as conseqüências... Sou um carroceiro.

– O senhor fala bem demais pra um carroceiro. Parece um profeta.

– Não sou profeta... Mas a minha verdade o amedronta.

– Que verdade?

– Vivo como acredito ser necessário. E acredito no que escreveu Fernando Pessoa: “A vida é breve, a alma é vasta: ter é tardar”. No que escreveu Sêneca: “Não temos de nos preocupar em viver longos anos, mas em vivê-los satisfatoriamente; porque viver longo tempo depende do destino, viver satisfatoriamente depende de tua alma”. Isso significa que vivo da providência porque quero que a notoriedade dos homens vá à puta que pariu.

– Notoriedade?

– Exatamente... O mesmo que você procura com suas fotos.

– E o que você procura com essa ladainha?

– Boa pergunta – um riso debochado lhe brotou na cara, mostrando os dentes sujos e encavalados.

Se a princípio me espantei com a reação do carroceiro, que imaginava ser um sujeito mais
simpático, agora tinha raiva dele, do seu conhecimento.

– O que fazia da vida antes de virar carroceiro?

– Nada de útil, ao menos nada de que me possa orgulhar. Papariquei muito imbecil egocêntrico, sedento por um reconhecimento oco. Queria eu também esse oco reconhecimento, até que não vi mais razão para tê-lo. Até que decidi dizer a eles exatamente o que lhe digo agora, até que não mais me queriam em canto algum, não mais me queriam em casa, não mais me queriam no trabalho. E sem trabalho, sem casa, sem dinheiro, não me restava outra opção a não ser viver das sobras dos notórios homens. Não me restava outra opção senão a minha crença, a minha certeza de que sua glória não vale um peido pra Deus.

– E o que vale pra Ele então?

– Talvez não valha a pena dizer.

– Como não?

– É uma palavra que hoje em dia todos usam como enfeite de retórica.

– Diga logo.

– Amor.

– O senhor é um profeta, definitivamente – disse-lhe sem esconder o desprezo pelo que ouvia.

– Não há nada de amor na ambição. Ninguém ama o poder nem o dinheiro nem a fama. Essas
coisas você não ama, você ambiciona, você as busca para ocultar alguma culpa, alguma falha de caráter, alguma fraqueza que o fez ser malvisto pela sociedade ou por você mesmo. Algo que lhe trouxe alguma espécie de trauma não sublimado.

– E o que sublima um trauma?

– O amor.

– Eu amo fotografar, amo as fotos que faço.

– Então isso deveria lhe bastar.

– Devo guardar as minhas fotos numa gaveta?

– Não disse isso. Disse que os aplausos não podem valer mais do que suas fotos; as pessoas que as aplaudem não podem valer mais do que as que são fotografadas.

Ficamos em silêncio por alguns instantes, ele olhando a carroça e mastigando a ponta da erva daninha. Eu olhando em seus olhos. Até que se levantou, pegou a carroça e a saiu puxando pela rua, sem dar a mínima aos carros, cujos motoristas reclamavam do espaço que o carroceiro ocupava na via.

– Péra aí! Como se chama? – gritei.

Não disse. Sem olhar pra trás, fez com a mão esquerda um movimento de “pouco importa” no vento, enquanto puxava a carroça com a mão direita.