segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

O retrato do carroceiro

por Wagner Hilário

A carne daquele carroceiro parecia pedra. Seus olhos não viam, miravam. A barba rala, rente, não tinha força para ir além, o que lhe conferia um asseio sem esforço. Com as costas apoiadas no muro, mastigava o caule de uma erva daninha tirada de uma rachadura na calçada. Forte, parecia deixar a carroça cheia de papelão descansar por alguns minutos, enquanto se dedicava a um misterioso trabalho intelectual.

Eu quis fotografar essa ideia. Desembainhei a máquina e disparei, sem fleche, aproveitando o quanto podia a luz frágil da tarde cinza. A imagem parecia feita de pó; um sutil chuviscado lhe dava um charme imperfeito. As cores eram discretas, como as roupas rotas daquele homem moreno feito terra fértil...

– Vai me expor sem pedir autorização?

As palavras do homem me agrilhoaram e antes que eu pudesse responder...

– O artista se julga sensível, mas sua sensibilidade raramente é altruísta. Quer realizar sua obra e colher as glórias que ela trará. Depois disso, os olhos do artista viram olhos da massa: o mendigo carroceiro ali exposto vira estorvo, vira cisco no olho.

Fez uma pausa para eu refletir sobre suas palavras, como se tivesse enfiado uma faca em meu ventre e a segurasse por alguns instantes para eu sentir ao máximo a chama da lâmina.

– Durante a mostra, os apreciadores se deleitarão com o seu talento, que conferirá à minha miséria uma riqueza redentora. Alguns talvez se comovam, sintam as carências do retratado, mas mesmo esses se esquecerão, pois não há nada que um bom vinho depois da exposição não cure... Não é o luxo que é um porre; é o porre que é um luxo.

– Que raio de gente é o senhor?

– O raio de gente que ninguém quer ser... Embora todos se queixem da opressão do mundo, ninguém quer ser o que defende. Queixam-se da boca pra fora. Ninguém tem coragem de encarar as conseqüências... Sou um carroceiro.

– O senhor fala bem demais pra um carroceiro. Parece um profeta.

– Não sou profeta... Mas a minha verdade o amedronta.

– Que verdade?

– Vivo como acredito ser necessário. E acredito no que escreveu Fernando Pessoa: “A vida é breve, a alma é vasta: ter é tardar”. No que escreveu Sêneca: “Não temos de nos preocupar em viver longos anos, mas em vivê-los satisfatoriamente; porque viver longo tempo depende do destino, viver satisfatoriamente depende de tua alma”. Isso significa que vivo da providência porque quero que a notoriedade dos homens vá à puta que pariu.

– Notoriedade?

– Exatamente... O mesmo que você procura com suas fotos.

– E o que você procura com essa ladainha?

– Boa pergunta – um riso debochado lhe brotou na cara, mostrando os dentes sujos e encavalados.

Se a princípio me espantei com a reação do carroceiro, que imaginava ser um sujeito mais
simpático, agora tinha raiva dele, do seu conhecimento.

– O que fazia da vida antes de virar carroceiro?

– Nada de útil, ao menos nada de que me possa orgulhar. Papariquei muito imbecil egocêntrico, sedento por um reconhecimento oco. Queria eu também esse oco reconhecimento, até que não vi mais razão para tê-lo. Até que decidi dizer a eles exatamente o que lhe digo agora, até que não mais me queriam em canto algum, não mais me queriam em casa, não mais me queriam no trabalho. E sem trabalho, sem casa, sem dinheiro, não me restava outra opção a não ser viver das sobras dos notórios homens. Não me restava outra opção senão a minha crença, a minha certeza de que sua glória não vale um peido pra Deus.

– E o que vale pra Ele então?

– Talvez não valha a pena dizer.

– Como não?

– É uma palavra que hoje em dia todos usam como enfeite de retórica.

– Diga logo.

– Amor.

– O senhor é um profeta, definitivamente – disse-lhe sem esconder o desprezo pelo que ouvia.

– Não há nada de amor na ambição. Ninguém ama o poder nem o dinheiro nem a fama. Essas
coisas você não ama, você ambiciona, você as busca para ocultar alguma culpa, alguma falha de caráter, alguma fraqueza que o fez ser malvisto pela sociedade ou por você mesmo. Algo que lhe trouxe alguma espécie de trauma não sublimado.

– E o que sublima um trauma?

– O amor.

– Eu amo fotografar, amo as fotos que faço.

– Então isso deveria lhe bastar.

– Devo guardar as minhas fotos numa gaveta?

– Não disse isso. Disse que os aplausos não podem valer mais do que suas fotos; as pessoas que as aplaudem não podem valer mais do que as que são fotografadas.

Ficamos em silêncio por alguns instantes, ele olhando a carroça e mastigando a ponta da erva daninha. Eu olhando em seus olhos. Até que se levantou, pegou a carroça e a saiu puxando pela rua, sem dar a mínima aos carros, cujos motoristas reclamavam do espaço que o carroceiro ocupava na via.

– Péra aí! Como se chama? – gritei.

Não disse. Sem olhar pra trás, fez com a mão esquerda um movimento de “pouco importa” no vento, enquanto puxava a carroça com a mão direita.

9 comentários:

Fred Linardi disse...

Caramba! Esse blog vai dar o que falar, hein?!
E, Wagner, que texto é esse? Eu prefiro nem comentar. Quero continuar refletindo um pouco.
abrs,
Fred

Renato Piccinin disse...

Boa, Wa. Parabéns pelo texto e pelo blog. Serei leitor assíduo. Abs.

Unknown disse...

Você é um lindo mesmo!
Alex Barone

Anônimo disse...

Adorei o seu novo blog. Você escreve muito bem Wagner, nasceu para escrever, que bom que você conseguiu descobrir o seu talento e nos presentear com textos lindos!!!


Mas não deixe de escrever no narravidas que eu também adoro, principalmente queando você escreve sobre o cotidiano da nossa redação. Tenho orgulho de trabalhar ao seu lado.

Bjss

Sil

CONFESSO QUE SENTI... disse...

Estou aqui pensando...como é difícil não esperar os aplausos e não dar
importancia a quem aplaude...Ser o fotográfo é tão mais fácil,tão mais
obvio...Falta mesmo nossa vontade perceber a vida e o exercicio dessa
vontade.
Me lembra muito o livro "Futuro da Humanidade", que te falei e as
descobertas que o personagem Marco Polo faz dele,das pessoas,de se
relacionar integralmente com o próximo,do amor.
Adoro seus textos....
Parabéns Poeta da Vida.

bjus,glenda.

Roberto Carlessi disse...

Wagner:
Impressiona a Carta do cacique Seatle ao presidente dos Estados Unidos. Não é uma carta. É um alerta que se mantém atual há mais de 150 anos.
A sustentabilidade do planeta continuará em permanente risco enquanto governantes e capitalistas selvagens não demonstrarem sensibilidade em suas mentes e em seus corações. Sentimos, sabemos que sentimos, que a luta por uma vida melhor no planeta está sendo rapidamente substituída pela sobrevivência.
Grande escolha, Wagner.
Abraço.
Roberto Carlessi

Anônimo disse...

Wagner:
O diálogo com o carroceiro é real ou ficção? Se for real, me passe o endereço dele para contato. Se for ficção, com toda a certeza a sua arte de escrever já está tirando xerox da arte de viver.
Abraço.
Roberto Carlessi

Anônimo disse...

Parabéns Wagner.

O texto é ótimo,uma lição de vida

Um abraço,

Margareth Meza

Anônimo disse...

Impressionante...
fiquei sem o que dizer! Mas acho que meu comentário resume tudo...
beijos
Lígia