quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Sobre distâncias e estrelas

por Wagner Hilário

Escrito na tarde do dia 26 do outubro de 2016

Memes, vídeos, fotos, textões, emotions, emoções e lágrimas, mesmo. Tem pra todos os gostos, tem de tudo: política, piada de time, de mau gosto, de gosto bom, riso frouxo, mulher pelada, pornô, tem bom-dia, ironia, maldade, acidez, tem saudade também... Se notícia ruim chega rápido desde que se leva carta a jegue, imagine agora, quando a estrada é feita de “zap-zap”.

Digo isso porque a eterna criança da família, aquele que sempre foi muito mais up do que down, se foi no meio desta manhã e eu, mesmo distante dele, por causa dessa vida doida que arrumei pra mim e que não me dá tempo pra saudade, fui informado disso, por essa modernidade faladeira, antes mesmo que o sol chegasse ao zênite, antes do meio-dia.

Foi assim, tio Nito, que eu soube que você foi parar no topo do céu... E é mais ou menos assim que eu também lhe peço para dar um beijo na ’vó e na turma toda aí. Eu lhe peço que ore por nós. Aqui embaixo, estamos tão dedicados a “vencer na vida” e fugir dela, ao mesmo tempo, olhando para telas disso e daquilo, que perdemos a oportunidade e a alegria de admirar o brilho e a beleza de estrelas como você, que, por toda uma vida, esteve tão perto.

terça-feira, 4 de outubro de 2016

As janelas de Criscent

por Wagner Hilário

— Quanto vale poder ver? — Pergunta o homem, que vai sentado, à frente, no banco de passageiro, ao motorista.

— Tanto quanto poder falar — responde o motorista, rindo e observando o menino de óculos, inebriado, olhando, à esquerda, pela janela do banco traseiro.

O pequeno Criscent Bwambale não sabia, tampouco imaginava que um dia seria possível, mas, quando viu as montanhas de Rwenzori e seus vales verdes de verdade, descobriu, enfim, que poucas coisas eram tão capazes de calar alguém como a visão de algo revelador.

Ao lado do silente Criscent, está sua avó. O silêncio também é companhia frequente dela, desde sempre. Afinal, em sua terra, às mulheres, não é dado, muito, o direito à fala. Por isso, talvez, também nunca lhe pôde ser negado o direito a ver e enxergar cenários e cenas reveladoras. Compensação natural.  O tempo e as revelações assustadoras, porém, tiraram-lhe, ao menos em parte, o encantamento com que já vira e com que gostaria de ver, para sempre, o mundo.

Tiraram-lhe, “ao menos em parte”, vale frisar, porque, agora, ao lado do neto, seu encantamento com o pequeno é visível no sorriso que se expressa não apenas em seus lábios, mas também em seus olhos. Ela cuida do menino, desde que nasceu. Cuida dos irmãos dele também, já que os pais passam a maior parte do tempo trabalhando nas plantações de cacau do vilarejo de Bundibugyo, noroeste de Uganda, onde vivem.

No carro, observando o neto, absorto na paisagem que se descortina inédita aos seus olhinhos, ela se lembra do dia em que uma moça, de olhos de mar e pele de areia, apareceu na porta da sua casa, dizendo ser médica e que queria examinar o menino. A lembrança da jovem, voluntária da ONG Sightsavers, encanta-a agora. Porém, na época, os olhos claros da moça a assustaram, até porque não sabia, ao certo, o que pretendiam fazer ao seu menino. Hoje, ela sabe...

Estima-se que, nos países em desenvolvimento, há 18 milhões de pessoas que vivem com cegueira evitável. Criscent nasceu com catarata nos dois olhos, o que lhe permitia enxergar apenas vultos e pontos luminosos. O que via era, sem dúvida, insuficiente para dar-lhe qualquer tipo de autonomia. Dependia da avó e dos parentes para quase tudo. Para seus familiares, Criscent nascera cego e morreria cego.

Porém, dias depois da visita da moça da ONG à casa de Criscent, em um hospital de Mbarara, cidade a sudoeste de Uganda e a quase 300 quilômetros de seu vilarejo, o menino foi submetido a uma cirurgia e, dois meses depois, cumprido o tempo de recuperação do procedimento, o médico Nelson Chaw lhe tirou a venda e lhe colocou óculos, com lentes levemente escuras. As janelas de Criscent, assim, foram abertas para o mundo: ele via, via as mãos hábeis de Chaw, o rosto mágico de sua avó e, mais tarde, as montanhas de Rwenzori.

Na vila de Bundibugyo, Criscent chega, depois da encantadora viagem, e é recebido como rei pelos irmãos e primos, que, a partir de agora, têm a missão de lhe apresentar o mundo e seus detalhes... São tantos, que o menino não sabe nem por onde começar. Começa, então, pelo afeto: descobre, pela voz, a prima de que mais gosta e corre na direção dela. Em seus braços, entrega seus olhos aos traços de seu rosto, hipnotizado por um amor infantil que, só agora, é capaz de enxergar.

Depois, volta-se para o todo a ser desbravado e, tragado pela cor rosa da flor, aponta em sua direção. Ele queria falar, mas desconhece palavra que signifique a mais nova descoberta de seus olhos recém-nascidos. Sua prima o leva, no colo, para que possa ver a flor de perto, para que possa tocá-la, como fazia quando não via, e, assim, recordar-se, dela, pelo tato.

A nova vida de Criscent está só começando. Logo, ele transformará encantamento em conhecimento e substituirá silêncio por palavras. Quem sabe suas palavras não se tornem mais um motivo de encantamento para a sua avó? Com certeza, ela está orgulhosa ao vê-lo brincar com as outras crianças, ao vê-lo correr atrás delas, enxergando, enfim, o que deseja tocar.

Com certeza, Criscent sabia, antes de terem-lhe limpado a cegueira, o que era brincar: ele nunca precisou ter visão para poder desfrutar desse encantamento. Porém, agora, que pode ver, brincar é bem diferente. Agora, sua avó pode escutar e ele pode dizer, com conhecimento “de vista”, em alto e bom som, enquanto corre atrás dos amigos, que...

— Nunca havia brincado assim antes!

Publicada pela BBC Brasil em julho deste ano (http://www.bbc.com/portuguese/internacional-36749845), a história do menino Criscent Bwambale me emocionou e me inspirou a escrever esta pequena crônica, acrescentando, à realidade noticiada, uma dose de imaginação.