segunda-feira, 8 de junho de 2009

Árido alarido

por Wagner Hilário

Verões cinzas
rasgam as tardes de dezembro

Meu cérebro inchado
de um trabalho em vão
pede folga ao céu
como um velho homem
esturricado e à beira da morte
pede água a um cacto
impassível e solitário
na tristeza do sertão

Pior que a inércia
é correr pro lado errado
dar a volta no mundo
cheio de esperança
e encontrar a mina de ouro
já sem o seu bocado

Carvalhos não adiantam
diante do fardo...
ou arruma a astúcia
que Deus soltou no vento
ou morrerá na penúria
sem nenhum alento

Quem me garante a vida
a não ser o tempo
Preciso ver entre os segundos,
mergulhar nos meus sonhos
e despertá-los concreto

Amanhã pode ser nuvem e
sem otimismo chulo
cabe a cada homem
garimpar seu sucesso

terça-feira, 2 de junho de 2009

Memória Afetiva


Pessoal, depois de um longo e tenebroso "inverno", volto a postar neste blog, que, algumas vezes, tardará, mas nunca falhará. O texto que lerão abaixo é uma crônica publicada na revista em que trabalho como subeditor, a SuperHiper, uma publicação especializada em negócios para o setor supermercadista, mas que, apesar da aparente sisudez da linha editorial dispões de espaço para um bocadinho de arte e descontração chamado Cotidiano. Boa leitura!

por Wagner Hilário

Pra Tomás, melhor que supermercados, só lojas de brinquedos... Em sua pueril visão, os produtos coloridos viviam e lhe pertenciam, todos. Talvez porque em sua cabecinha não existisse distinção entre ele e os objetos e seres que o cercavam. Assim, o seio da mãe, produto máximo em valor (prazer), se confundia com pistolas d’água cor de laranja, com narizes de palhaços e, nos supermercados, com os pedaços de carne embalados à vácuo nas prateleiras refrigeradas. Tomás arregalava os olhos e tentava alcançar aquela teta diferente com as pupilas, já que os braços não eram grandes o suficiente e as pernas não aguentavam seu corpinho. Mamava o ar, então. Como nada de verdade lhe vinha à língua para saciar sua sede pelo prazer materno, abria o berreiro.

Mais velho, já sabendo distinguir o que era o quê daquilo, mas ainda assim querendo divertir-se com tudo o que via, a presença de Tomás era invariavelmente um estorvo pros pais e uma faca de dois “legumes” pro supermercadista. No hortifrúti, colocava a laranja no chão e chutava, dizendo que era a “boia de fulebó”. No bazar, mergulhava na piscina de plástico sem água. Quando o pai ralhava, ele corria pelos corredores com os braços abertos e derrubava os concentrados de limpeza rindo, achando que era pega-pega. Na hora de ir embora, queria porque queria o chiclete cor-de-rosa choque, com a cara feia do Ronaldinho Gaúcho estampada, exposto no display do caixa. Pros pais, só prejuízo...

Passada a idade em que ir ao supermercado nem pensar, porque era bem melhor jogar bola com a galera descalço na rua de paralelepípedo da casa da vó, Tomás, que agora mamava em outros bicos, passou a ver graça de novo nos supermercados, onde encontrava cerveja mais barata pràs festas que dava em casa, na ausência dos pais, aos fins de semana, pra desespero dos vizinhos. Foi numa dessas, quando já estava no último ano de faculdade, que ele e Cláudia deixaram de ser apenas amigos. Ele prometeu que assim que festa terminasse a levaria pra casa, ela fingiu que acreditou e eles aproveitaram o vazio do lar pra preenchê-lo de paixão. Três meses depois descobriram que o ventre dela se preenchera de vida. Nove meses depois Sofia nasceu.

O começo foi derrapante: falta de grana, falta de tempo, falta de tudo, menos de amor... Assim se adaptaram e numa das inúmeras idas do casal ao supermercado, Sofia, com dois anos, saiu correndo entre as araras da seção de têxtil da loja, deslumbrada com as cores das roupinhas penduradas. Parou e apontou pra um vestidinho. “Quelo eche, papai.” Cláudia nem notou, entretida que estava com outras peças, mas a cena mexeu no inconsciente de Tomás, que sentia, no profundo desconhecido de sua vivência, já ter vivido aquele instante (ou pelo menos algo parecido). Olhou pra esposa e, dominado por um ciúme paternal besta e incompreensível pros outros, disse a Cláudia:

– Enquanto a Sofia estiver sob nossa responsabilidade, não vai passar uma noite longe da gente.

Cláudia torceu o nariz. Sem responder nada, olhou pra menina, que namorava a roupa, pegou-a pela mão e depois pegou o vestidinho... Foram juntas pro caixa.