domingo, 19 de dezembro de 2010

Nascente

/por Wagner Hilário/

A fonte é sempre bela,
Arlinda.
Quando ganha corpo:
Caudaloso rio de vida.

A fonte é forte
E se prova na foz:
Ondas vorazes
Prontas para o mar feroz.

A fonte é murmúrio pueril:
Lírio d’água,
Cabelos de criança.

A fonte é azul,
Reflete seus olhos de sacrifício
Que nos deu de presente
O céu

A fonte é eterna,
Arlinda,
Pois quem esquece as origens
Jamais existiu.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Muro Milenar

/por Felipe Borges*/

Já diante do muro milenar, ajoelhou-se o pôs-se a rezar... uma reza estranha aos ouvidos dos fiéis que já haviam decorado todas as rezas que deveriam fazer de frente para a monumental parede. Alguns escutavam com desdém, outros, desprezo. Mesmo que ele orasse para si e para mais ninguém, para os ouvidos astutos daqueles que se interessavam mais pela prece dos outros que pelas próprias, aquele som pífio que saia de sua boca e nariz e a articulação pobre de seus lábios eram mais que suficiente para que escutassem claramente. Em especial, uma das fiéis mais antigas que estava logo ao lado dele. Cabisbaixo e pendurado por fios invisíveis, parecia estar totalmente relaxado, solto no ar... Anda, faz logo esse pedido, não tem porque ficar agradecendo tanto e explicar por que?... A fiel anciã e curiosa que permanecia inerte em seus movimentos ao lado direito do recém-chegado reclamava da demora em fazer o seu pedido... Um outro fiel, que parecia ter sido forçado a estar lá, tentava entender e escutar o pedido dele. Mas não por curiosidade ou para ter o que falar com seus amigos... porém para poder ter algo que pedir. Anda, fala. Quem sabe eu não quero a mesma coisa! No momento preciso em que ele ia fazer o seu pedido para o muro de mais de mil anos, uma aeronave que fazia um barulho ensurdecedor e parecia mais com um dinossauro voador de proporções inimagináveis sobrevoou o deserto, a fiel ficou desesperada pois não o escutava mais... virou levemente o seu rosto e tentou ler-lhe os lábios, porém em vão, a língua dele ficou ainda mais estranha e agora estrangeira... o fiel descontente que premia por saber o desejo dele para saber se era o seu desistiu e sem perceber olhou para cima, como a maioria dos fiéis achando que seriam os únicos a fazê-lo e por isso não teria mais ninguém para vê-los desconcentrados de suas preces já criadas e apenas repetidas, para ver o objeto voador... Vai logo passa logo. dizia a fiel, mas não passava... ele estava inerte, como se estivesse completamente só, no meio da areia que a nave remexia do chão, como se fosse a sua última e única chance... Todos, agora, olhavam para cima, até mesmo a fofoqueira... Depois eu invento um pedido bem cabeludo para contar a todos..., pois já havia se passado mais de 15 minutos que o som da aeronave trepidava o muro, ele continuava absorto. Ele sabia o que queria e desejava do fundo de sua alma... O barulho cessou... acordou, abriu os olhos e sem se despedir de ninguém foi embora para nunca mais voltar, pois já não era mais preciso.

* Felipe Borges é músico, professor de inglês, tradutor e escritor, por enquanto, apenas ocasionalmente

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Deus tem saudade

/por Wagner Hilário/

Em tempo, a vida brota
Passa o tempo, corre
socorre a gente
O tempo verde vai
seca, cai a folha:
tempo de brotar outra

Todo o broto
é tão velho quanto a terra

Ai do tempo
se não transformar em riso
o pranto
Ai do Outono
se não plantar a Primavera

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Outro dia

por Wagner Hilário

O dia se deita
Poeira na noite
Estrelas

Percebe-se o sol
Quando se esconde
É lua

A gente não percebe
O sol que esconde
A alma

Anêmica realidade
Por não ser anímica
A vida

A noite explode
Manhã brilha
É sol

domingo, 24 de outubro de 2010

Obra da Vida

por Wagner Hilário

Uma manhã nasce assim:
Duas mãos miúdas esticando meus lábios pelas bochechas.
Se pinta assim:
Dois olhos celestes de infância concentrados no desenho vivo
Que sou eu.
— Que tá fazendo, filho?
— Tô te sorrindo.

sábado, 9 de outubro de 2010

Desfeito e refeito

por Wagner Hilário

Defeito, eu feito Deus feito de barro
Ramo de flores, jarro de sonhos...
Eu derramado

Punhal, pena, poema afiado
Pomba alva, neve na praça
Pobre alvo, eu, minha caça

Eu feito Deus feito de culpa, desculpa
De novo, eu, barro, esbarro em Deus
Me refaço

Ramo de flores, jarro de sonhos
Eu no seu seio, seus braços
Só não sei até quando equilibrado

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Monólogo de um penitente

por Wagner Hilário

— A ignorância é uma dádiva às vezes autoconcedida, às vezes filha das circunstâncias, noutras imposta por alguém.

— Essa frase é prova da sua ignorância.

— O fato é que a ignorância num primeiro momento parece sempre mais conveniente. Isso porque a irracionalidade é bem mais forte que a razão. É confortável. Dá-nos a sensação de onipotência. Ela ignora o tempo. É tudo presente e o presente é só seu. O futuro é fugidio, liso. O passado pode não ser saudoso, então é melhor que não seja.

— Nada disso, cê tá confundindo o cego com o ignorante. Tô falando do pior cego, aquele que não quer ver. O ignorante não sabe. O cego que não quer ver sabe.

— A irracionalidade não enxerga um palmo à frente do nariz e ainda assim nos dá a falsa impressão de que sabemos tudo. Quem sabe tudo, pode tudo. É o canto da sereia.

— Cê tá me ouvindo?

— No plano da razão, a dúvida é a maior certeza. Duvidar é doloroso, e quem duvida é chato. O caminho da razão é infinito, caleja, ninguém sabe se salva e a recompensa é a iluminação. A razão é um oásis disfarçado de deserto. Poucos têm coragem de explorar o deserto.

— É surdo, você!

— A mente é o elo, muitas vezes perdido, entre a carne e o espírito. A segunda gaveta da mente é maior, mais bagunçada e fantástica que a primeira. Chama-se inconsciente. A outra, a primeira, é o consciente. Essa é bem mais rasa, normalmente, embora quanto maior seja melhor será. Ela guarda aquilo que julgamos mais construtivo à nossa alma. Alguns dos “utensílios” lá encontrados foram tirados da segunda gaveta.

— Acho melhor parar por aí. Vão descobrir que cê é ignorante.

— Um espírito saudável é aquele que consegue estabelecer uma relação equilibrada e harmoniosa entre o inconsciente e o mundo externo. Quem articula esses dois mundos é o consciente. Essa harmonia é o que podemos chamar sabedoria.

— Onde cê pretende chegar?

— Onde tudo começou.

— Onde cê tava esse tempo todo?

— Onde cê queria que eu ‘tivesse? Submerso em seu inconsciente, claro. Você me embriagou do dinheiro ganhado aos montes, das mulheres comidas como num oceano de orgia, das drogas consumidas, da fama fugaz e fútil que o mundo lhe deu e que suas carências consumiram sem moderação. Nada lhe adiantou, nem a educação que recebeu nem as centenas ou milhares de livros que leu. Nem os exemplos dos amigos desalmados. Você correu do entendimento. Você não quis lançar luz sobre suas trevas-lembranças porque preferia ignorá-las. Ignorava que se cegar pelo que não se quer ver é potencializar no futuro a desgraça que já passou. Se não ignorasse o desejo de se autocegar, enxergaria. É melhor chorar o leite derramado e limpá-lo que rir de ignorância no presente e matar e morrer de loucura no futuro.

— Para de falar, Desgraçado! Não tá vendo que tá tudo acabado. Chegou tarde. Eu já matei e agora o que eu fui morreu com ela. Restou-me só você.

— E a liberdade. A liberdade de ir pra onde quiser. Não há sequer quem desconfie de você. Sujeito rico, bem relacionado e respeitado. Nessa ordem, porque é nessa ordem que as pessoas enxergam. É bem mais difícil que as pessoas respeitem um homem pobre sem amigos influentes.

— Uma hora a polícia descobre.

— Só se for numa sessão espírita. Você pulverizou todas as provas, a vítima, todos os “arquivos”. Todos têm certeza que o assassino tá morto. O inquérito foi encerrado. Os moralistas ainda a chamam de vadia. Dizem que não devia ter se metido com quem se meteu, que se deixou meter por quem não devia... Dizem que tá tudo mais do que explicado. Justiça feita, por linhas tortas, como gosta Deus. É isso que dizem.

— Então vai embora.

— Já fui, há muito tempo. Antes de matar essa moça e todo mundo que cê matou, já havia me matado. Se eu tivesse vivo, não o deixaria fazer isso. Essa voz que você escuta não é senão meu fantasma.

— Então, vai embora, fantasma! Não guento mais ouvir sua voz.

— Isso eu não posso fazer por você. Enquanto existir, eu serei sua companhia. Vou funcionar como eco dos seus feitos, brilhantes e opacos.

— Meu Deus! Isso tem cura?

— Confessa tudo e aguenta na pele o que você não quer aguentar na consciência. Assim, eu ressuscito, deixo de ser fantasma e posso ajudar você. Garanto que na pele dói menos que na alma.

— Você é bandido, rapaz! É isso que cê quer, né? Nunca! Nunca! Ouviu?

sábado, 24 de julho de 2010

De longe

por Wagner Hilário

A distância diminui o homem,
empobrece detalhes,
defeitos, qualidades.

À distância, tece-se belos planos,
tem-se um belo plano
de bonecos se movimentando.

A distância não o deixa tocar
nem saber o que é, de perto.
Decerto, não o deixa sentir.

À distância, não se vê nos olhos,
não se vive, só se supõe... Então
se ponha a marchar a distância

antes que todos sumam
no horizonte.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Vida Amarela

por Wagner Hilário

Na via havia carros velozes
blindados de pressa.
A negligência rota e suja
atravessava com sua prole
sob a passarela.
Uma borboleta amarela
também cruzava a via.
Desafiava o pó e os escapamentos.
Escapava viva... Por Deus.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

José Saramago

por Wagner Hilário

Há algum tempo penso em postar neste espaço minibiografias de grandes literatos. Cedo ou tarde, eu ia fazer isso, mas, como diz um velho ditado, “a oportunidade faz o ladrão”. Faz também o desonesto, o infiel, o vingador, o vilão, o artilheiro, o enlace entre dois que serão um, o herói, o gênio, o ídolo... Não sou ladrão nem herói, tampouco artilheiro, mas acho que tenho a oportunidade de inaugurar essa categoria de postagens neste blog falando de José Saramago, falecido há poucos dias, três para ser exato. Falar um pouco da vida de um dos maiores escritores de nossa língua é uma honra e, nesse caso específico, uma tristeza. Desejava ver Saramago “na ativa” por muito mais tempo e ler mais textos inéditos de sua autoria, mas o tempo não poupa ninguém. Ainda bem que existem homens como Saramago que, por meio de sua genialidade, encontram maneira de tornarem-se imortais.

José de Souza Saramago nasceu em 16 de novembro de 1922, em Azinhaga, povoado da província do Ribantejo, a nordeste de Lisboa, capital portuguesa. Segundo ele mesmo diz, era para se chamar apenas José de Sousa, mas o funcionário do registro civil tomou a liberdade de acrescentar ao seu nome a alcunha pela qual a família de seu pai era conhecida, Saramago, nome de uma planta herbácea cujas folhas faziam parte da dieta dos pobres em períodos de carência no povoado.

A marca registrada da literatura de Saramago é a reflexão, a reflexão profunda sobre a condição humana e os valores que precisamos cultivar se quisermos construir uma sociedade melhor; se não quisermos nos autodestruir. Saramago cultivou a reflexão e nos entregou suas nutritivas folhas num momento em que o mundo se encontra inteiramente carente delas.

“Acho que na sociedade actual nos falta filosofia. Filosofia como espaço, lugar, método de reflexão, que pode não ter um objectivo determinado, como a ciência, que avança para satisfazer objectivos. Falta-nos reflexão, pensar, precisamos do trabalho de pensar, e parece-me que, sem ideias, não vamos a parte nenhuma.” Esta foi a última postagem de Saramago em seu blog, reproduzindo trecho extraído de uma entrevista concedida por ele mesmo à revista portuguesa Expresso.

Seu depoimento sobre a importância da reflexão é apenas uma gota no oceano de sua produção literária. São 20 obras, entre peças teatrais, livros de crônicas, de relatos de viagens, de poesia, de contos e de caráter infantil. Isso, obviamente, exclui seus dezesseis romances, entre os quais se destacam O Evangelho Segundo Jesus Cristo, que lhe valeu o Nobel de Literatura em 1998, o primeiro para um escritor de língua portuguesa, e Ensaio Sobre a Cegueira, que virou filme em 2008 e ganhou as telas de boa parte dos cinemas do mundo. Antes de se dedicar exclusivamente à literatura, Saramago trabalhou como serralheiro, desenhista, funcionário público e jornalista.

Embora tenha nascido no campo e no seio de uma família de camponeses, mudou-se com os pais para Lisboa, quando tinha apenas dois anos de idade, em 1924. Teve seu primeiro emprego aos 18 anos... Depois de concluir os estudos de serralheria mecânica na Escola Industrial de Afonso Domingues, começou a trabalhar nas oficinas dos Hospitais Civis de Lisboa. À noite, frequentava a biblioteca municipal do Palácio de Galveias. Lia sem nenhuma orientação, “com o mesmo assombro criador do navegante, que vai inventando cada lugar que descobre”.

Em 1944, com 22 anos, Saramago se casou com a pintora Ilda Reis, com a qual teria uma filha, Violante, três anos depois. Foi também em 1947 que ele publicou seu primeiro romance, Terra do Pecado. A essa altura, Saramago era apenas um embrião no universo literário e cultural português. Ele só começaria a adquirir notoriedade em 1955, quando passa a trabalhar para editoras, fazendo traduções de autores como Tolstoi.

Conciliando inúmeras atividades, não mais apenas só no campo editorial, mas também no jornalístico, Saramago segue publicando obras de diversas naturezas, escrevendo peças e conquistando paulatinamente seus conterrâneos. Em 1980, ele publica Levantado do Chão, ganha o Prêmio Cidade de Lisboa e inaugura estilo que passaria a ser chamado de saramaguiano — entre outras coisas, um conteúdo recheado de viés político e ideológico (comunista convicto e crítico contumaz da Igreja Católica), uma forma incomum, até mesmo subversiva à gramática em alguns momentos, presença de elementos da oralidade, longos parágrafos e uma impressionante fluidez.

Saramago ganha notoriedade internacional em 1983 com o romance Memorial do Convento. Consolida seu nome na literatura mundial contemporânea já no ano seguinte, com o romance O Ano da Morte de Ricardo Reis, que receberia inúmeras premiações em outros países. Em 1988, casa-se com a jornalista Pilar del Río — havia divorciado-se de Ilda Reis em 1970 e mantido um relacionamento com a escritora Isabel de Nóbrega por dezesseis anos. Em 1991, crava seu nome, definitivamente, na seleta lista dos escritores que conseguiram ir muito além de seu tempo com a obra, O Evangelho Segundo Jesus Cristo.

Saramago seguiu produzindo em alta rotatividade, mesmo depois da consagração, cujo símbolo maior foi a conquista do Nobel, em 1998. Pouco antes de sua morte, encontrou força e inspiração para publicar dois elogiadíssimos trabalhos: o conto A Viagem do Elefante, obra recheada de críticas, mas também de um bom-humor contagiante; e Caim, romance igualmente ácido e divertido, publicado no segundo semestre de 2009.

No ritmo que vinha, seus admiradores esperavam mais uma obra para 2010. No dia 18 de junho ele a terminou, depois de mais de 87 anos dedicando-se a ela.

Fontes de informação do texto: http://www.josesaramago.org/

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Reconciliação (prosa-poema)

por Diego Carvalho

Quem falou fui eu porque você calou. Quando a sua voz morreu o silêncio berrou mais alto que trovão. Aí você se encolheu na palma da minha mão. Enquanto a chuva nos banhava e encharcava prateada os meus pulmões, eu segurava as lágrimas pra não desperdiçar sabendo que quando você fosse embora eu ia querer chorar. Meu peito disse adeus mas tuas coxas hesitaram e abraçando o meu corpo nenhuma delas se cansaram até você resolver ficar. Então meu peito se calou ao ver o seu quadril dançar, e mesmo sem ir embora você me fez chorar.

Diego Carvalho escreveu o livro, Quebra-Cabeças em Peças de Vida, estuda sistemas de informação, trabalha na área de programação e suporte de banco de dados, "adora projetos de animação" e dá aulas de jiu-jitsu e muay thai.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Miragem

por Wagner Hilário

Pra ele, todas as noites tinham lua. Até quando havia nuvens, a lua fazia questão de se mostrar; ela pedia licença, e as nuvens, cinzas e sisudas, se desmanchavam e se abriam num riso frouxo, pra que o facho de luz pudesse avivar a noite.

No céu de seus olhares notívagos, a lua jamais minguava; estava sempre cheia, cheia de suas fantasias, que aos ouvidos alheios soavam besteiras. Mas lhe faziam tão bem!

Antônio não era um cara sensual; sua beleza dava pena. Inteligente, até que era, mas era raso. Estava longe de ser o filho preferido de seu pai. Ainda assim ele tinha grandes pretensões, embora ninguém notasse. Não que não dissesse, não o levavam a sério.

Incapaz de ver a noite no esplendor de sua escuridão despida de lua e incapaz ver suas limitações refletirem-se nos olhos dos outros, Antônio mirava miragens e miragens são desejos, quase necessidades, falseando a realidade.

Nunca teve uma paixão não correspondida, apesar de as mulheres que amava não saberem que o amavam. Elas sempre resistiam aos seus sentimentos, ele dizia, e por isso, só por isso, ele acabava sozinho. Só por isso, ele nunca esteve com alguém.

As pessoas o achavam engraçado, até o dia em que decidiu chegar à lua. A felicidade deve ser colocada onde possamos alcançá-la. Tomado por uma alegria alucinada, subiu ao terraço do edifício em que morava e descobriu que não podia. Só lhe restava beijar o chão.

O dia seguinte amanheceu ensolarado, radiante, mas muitos preferiam não ter acordado tão cedo.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Moral da história

por Wagner Hilário

Chego em casa farto de trabalho, sem paciência pra nada, querendo desaparecer por algumas horas, que no plano da reflexão devem durar anos-luz. Mas meu menino não deixa. Quer o pai que pouco vê ao longo da semana e que, muitas vezes, tem de dividir com mais trabalho aos fins de semana.

Meu pequeno Hércules quer lutar. Sobe nas minhas costas, quer que eu o leve de cavalinho. Isso é bom e ruim. Bom porque os homens também demonstram afeto pela brutalidade — poucas mulheres são capazes de compreender. Ruim porque tô cansado, a fim de descansar no sofá, assistir à tevê. Nada mais medíocre e comezinho. Quero que ele fique comigo, sentado, quietinho, falando só de vez em quando. O fato é que quero demais e quem quer de menos é mais feliz.

— Sai de cima, filho. Papai tá cansado. Depois, depois. Fica quietinho. Para de pular do sofá. O vizinho vai xingar, Gabriel. Isso aqui é apartamento... — Em vão. Aí recorro à ameaça de castigo e finalmente sou escutado. Então é a vez dele ficar mal-humorado, esbravejar com o pai, dar a entender que sou chato.

O desejo dele é pra lá de divertido, pra lá de rico. Eu me esforço tanto pra tantas coisas. O que me custa ter forças pra aproveitá-lo? O tempo passa, e quando a gente se dá conta disso, ajunta as tais forças e se supera. Por ele e pela gente; pela saudade que um dia vai sentir desse tempo que passa e jamais volta.

Então, eu brinco, pelo menos um pouco. Brincar na medida da vontade dele é tarefa sobre-humana. As crianças precisam de limite e o limite não é o deles, mas o dos outros, o do mundo. Nesse caso, o meu... É tarde da noite e ele precisa dormir.

— Conta uma história. Uma, não... Três, quatro...

— Tá, eu conto. Vai escovar os dentes antes.

Ele tá pra lá de feliz ultimamente: a mãe comprou um antisséptico bucal infantil. Tivemos algumas discussões porque ele achava que podia usar o nosso, desde que misturado com água. Dizíamos que nem assim. Ele ficava bravo. A hora de escovar os dentes era chata. Agora, tudo mudou.

— Terminou? Deixa eu ver. Vamos pra cama. Para quieto. Para de pular... Cê parece sua mãe, se descobre inteiro. Se continuar pulando, não vou contar história nenhuma. — Tô sem a menor disposição pra contar história, mas ele quer ouvir e me obedece; sossega, com um riso arteiro no rosto. Aí, manda a travessura:

— Conta sem ler.

Faço uma cara de descontentamento e digo que vou contar uma história lida, tem um monte de livro em casa. Além de contar vou ter de inventar! Tô sem cabeça pra isso.

— Ah, tá vendo, você não gosta de me contar histórias.

Não é verdade. Sempre amei contar histórias, ainda mais pra ele. Mas a conjuntura, o contexto não me favorece. Ter de criar algo novo, inédito, como ele deseja, às onze da noite, é difícil. Não vou contar a ele como foi meu dia de trabalho. Acho que não é isso o que ele quer ouvir.

Bom, sem desculpas. Se ele disse que eu não gosto de contar é porque passo essa impressão. Preciso desfazê-la.

— Vou lhe contar duas histórias em uma...

Era uma vez um papai que sempre chegava exausto do trabalho, que não tinha disposição pra brincar nem contar histórias a seu menino, apesar de tantos pedidos. Um belo dia, vendo o garoto brincar sozinho, sem nem mais procurá-lo pra repartir as suas brincadeiras, sentiu-se só, desimportante.

O pai o amava muito, sempre que o encontrava o enchia de beijos. Queria tê-lo perto, queria abraçá-lo e dormir junto com ele no sofá, vendo jogo de futebol. Mas não queria estripulias nem piruetas, queria evitar mais fadiga. O menino ‘tava noutra; ‘tava animado, não queria descanso, tinha muita energia pra gastar, apesar de já ser tarde da noite.

Se sentindo culpado, sentindo como se ‘tivesse perdendo um pouco da própria vida ao não usufruir da infância do filho, ele resolveu fazer o que tinha certeza que ia agradar seu menino. Disse a ele que iria lhe contar uma história de ninar...

Era uma vez um menino que ficava muito bravo porque o pai não tinha disposição pra brincar com ele nem pra lhe contar histórias à noite, quando chegava do trabalho. Porém, ele sabia que era amado, porque o pai lhe perguntava sempre como fora o dia, o que fizera na escola, dava-lhe broncas e também o enchia de carinho. Ainda assim, ele ficava chateado com o pai, que não brincava.

Um dia, o pai não chegou do trabalho e ele ficou aflito, ansioso, sem saber o que ‘tava acontecendo. Não conseguia brincar direito. Ficou ainda mais preocupado quando viu a mãe aos choros desligar o telefone. Correu pra perguntar a ela o que tinha acontecido.

Antes que eu pudesse dizer o que disse a mãe do menino a ele, na história, Gabriel, ansioso, se antecipou.

— O que aconteceu com o pai dele?

— É... O pai dele... — Ainda não tinha pensado. ‘Tava bolando algo e não queria matar o pai dele. — O pai dele havia sofrido um acidente, caído da escada, porque não tinha segurado no corrimão, e ‘tava hospitalizado. Mas depois de uma semana, ele voltou pra casa, e disse pro filho que logo estaria bom, pra eles brincarem.

— Uma semana? Nossa! É bem mais que um dia.

— São sete dias.

— Sete dias. Nossa!

Gabriel silenciou por alguns segundos. Pensei: “deve tá pensando na moral da história”.

— Como é que ele caiu? Onde foi que machucou? ‘Tava no trabalho? Alguém ‘tava junto?

— Ah, filho, isso é o que menos importa.

Eu queria que ele entendesse a moral ou “as morais” da história, que são: o papai precisa se esforçar pelo filhinho — não só pelo filhinho, mas por ele próprio, porque no fim das contas aquela troca toda valia muito mais a pena que ficar sentado no sofá vendo tevê — e o filhinho precisa compreender o papai, que o ama mais que tudo. Gabriel não parecia disposto a pensar nisso. Ele queria saber detalhes do acidente.

— O que ele machucou? A cabeça? Machucou muito?...

— Filho! Para de perguntar um pouco e me responde. O papai quer saber se você entendeu o mais importante da história e o mais importante não é como o papai do menino caiu, como machucou nem onde... Ele machucou um pouco a cabeça, mas não foi nada demais. Agora me fala o que é o mais importante dessa história?

— O mais importante é que o papai voltou pra casa.

Eu ri de felicidade. Não era a resposta que eu esperava, mas não havia melhor resposta pra ouvir. Disse a ele que era o melhor filho do mundo e lhe dei um beijo. Ele também ‘tava contente. Nem se lembrou das outras duas histórias que lhe devia. Disse a ele que era hora de dormir. Ele concordou na boa, me disse boa-noite, pediu minha mão pra segurar e logo adormeceu, segurando-a. Eu o cobri e fui pro meu quarto, agradecendo a Deus por ter me dado aquele momento, por ter me dado esta história.

domingo, 16 de maio de 2010

É roça, viu!

por Diego Carvalho

Um conjunto de telhas brilha no fim do dia sobre a casa pequenina que a chuva alcança. Segura a barra e não desaba sobre o chão que ali descansa. A noite avança sobre o dia enquanto a água faz caminho numa trilha alaranjada descendo lesta pra cair de encontro a grama. A lua parece trazer uma harmonia e as nuvens se vão. Canta grilo e cigarra perto das paredes rachadas da casa que brilham no resto das gotas prateadas que ainda escorrem numa só direção. No meio do nada uma escuridão. Uma lâmpada brilha de repente na varanda e sozinha, de jeito que até entristece, ilumina o que pode. Faz-se notável então uma rede pendurada e encharcada que de dia não chamava a atenção. O poço acometido ao fundo da terra num topo de tijolo e o balde de madeira na ponta da corda que o vento sacode. Dá pra ouvir até respiração. E em destaque, a água fervendo de dentro da casa convida os sentidos que aguardam ansiosos tentando adivinhar se vai ser café ou uma boa xícara de chá. O cavalo dorme em pé que nem sonâmbulo e a bicharada tá atiçada pra caçar. É questão de tempo e de sorte, que se faz presente a morte, mais chamada de azar, pra seu Matuto, a pé, ter que andar.

O dia chega no horário batendo cartão às cinco da manhã. Ofusca toda e qualquer lâmpada de varanda que se aventurou a brilhar. “Esse aí é trabalhador!” Alguém reverencia o sol de todo amanhã que nunca faltou e nem pode faltar. E seguindo o exemplo do sol como de costume seu Matuto já tá com a sola grossa no chão, fumo e palha no bolso, de calo na mão, preparado para o trabalho.

Cumpade passa e de longe avisa num grito:

— Vixe, Austêncio! Os bicho cumêro o Tornado!

Tem coisa que você sabe que vai acontecer, mas também não sabe como prevenir, e quando chega a hora de fato não vai saber como remediar.

Matuto Austêncio num susto tropeça, ainda agachado no chão do quarto calçando a butina perde o equilíbrio e leva as mãos à cabeça. Ainda atordoado ouve a voz do cumpade se aproximando:

— Austêncio? Ce tá aí? Austêncio.....?

Ele se levanta depressa, sai do quarto, atravessa a cozinha chegando na porta da casa, dois giros na chave que destrava a fechadura e dá de cara com cumpade Zelito.

— Os bicho cumêro o Tornado!

Diego Carvalho é um dos responsáveis por eu escrever. É responsável também por construções como: "O medo da solidão é engraçado. Ele nunca atormenta quando estamos sozinhos e nunca nos deixa sozinhos quando temos alguém". Diego escreveu um livro, Quebra-Cabeças em Peças de Vida, estuda sistemas de informação, trabalha na área de programação e suporte de banco de dados, "adora projetos de animação" e dá aulas de jiu-jitsu e muay thai.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Justiça fálica

por Wagner Hilário

Todo ser humano é um infinito sideral insondável. Tobias sentia, mas não sabia disso, e como sempre negligenciou os sentimentos e superestimou a razão, permanecia ignorante. Ele só sabia disso em seu íntimo desconhecido, aquela porção de nós que não nos pertence, pertence ao sempre. Mas pra saber de verdade, com consciência, era necessário que se dispusesse a pesquisar isso em seus sonhos enigmáticos, era preciso o maior dos estudos, a que poucos de nós estão dispostos a empreender.

— Bobagens — ele dizia.

Seu caráter inquisitorial e dogmático o afastava das pessoas e o afastava de si mesmo. Não se dava conta. Sua mente privilegiada, porém, lhe assegurava uma posição social de destaque. Sua postura sobranceira inspirava o temor dos subalternos. Com esse temperamento, ele conseguiu a solidão. Depois de cansar de dizer que não tinha com ele uma relação profissional, a esposa resolveu deixá-lo e deixar toda a boa vida que a grana de Tobias ia-lhe propiciar. Foi-se embora, com o saco na lua da imbecilidade bem argumentada do marido.

Mas a todo império racionalista está reservado um tsunami do inconsciente, que traz consigo todas as impurezas de seus recalques. Frágeis, os diques de sensibilidade de Tobias foram facilmente vencidos pelo vácuo existencial em que se descobriu quando perdeu o emprego, quando se viu castrado do poder que julgava ser seu, pra sempre e desde sempre. Broxou uma, duas, três, infindáveis vezes na cama da puta, com a qual tentava salvar sua honra.

Foi depois da derradeira broxada que Tobias resolveu pôr fim ao seu drama, castigando todos os responsáveis pelos seus fracassos...

Asfixiou a puta com o travesseiro. Saiu do puteiro discretamente, mas rapidinho, antes que dessem pela morta e seguiu para a casa do ex-chefe, que o recebeu pessoalmente. Mal abriu a portão, Tobias acertou-lhe preciso na testa com uma barra de ferro que não conseguiria segurar com apenas uma das mãos. Entrou no carro, passou em casa, porque era caminho, pegou a 765 e continuou a via fatal. Tocou a campainha da casa da ex-mulher, que o recebeu, feliz como nunca e trazendo consigo uma iluminada barriga.

Tobias lacrimejou e a olhando atônito, perguntou:

— Quem é você?

— Só agora você resolveu saber?

— Eu ia te matar.

Jogou a arma no chão, dobrou os joelhos, deitou na calçada e esperou a polícia chegar.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Que seja pela última vez

por Sílvia Paladino

Parece mais humano do que inteligente sofrer de algumas paranoias. Umas mais crônicas, outras que se dissolvem aos solavancos de uma expiração mais áspera. Qualquer um está sujeito, afinal, a se perder da realidade de vez em quando, ou não?

Por volta das onze e tantas de uma noite comum da semana, dirigindo de volta para casa, Gabriela pouco enxergava através da janela do passageiro do carro, seja pela atenção ao volante, pelos vidros protegidos com insulfilm ou, mais provável, pela resistência tímida em encarar o estranho admirador que conduzia o automóvel ao lado. Pista expressa, poucos semáforos. Por alguns quilômetros, se fez passar por desentendida. Pouco mais adiante, passou mesmo foi o seu número de telefone.

– Me dá o seu celular? – arriscou o rapaz, agitando o seu próprio aparelho no ar.

Gabriela desceu o vidro elétrico (só até a metade) e, antes de dizer qualquer coisa, radiografou braços, mãos e rosto alheios. Nenhuma orelha de abano, aliança de compromisso ou tendências psicopatas. Ao contrário disso, surpreendeu-se ao mapear os cabelos de tom loiro escuro, com lisos fios acompanhando a longitude do pescoço; os ombros largos e fortes, expostos pela camiseta regata; o maxilar quadrado, feito os guerreiros da era medieval, ou pelo menos aqueles retratados no cinema; e o limitado espaço do Peugeot 206 para a sua estatura.

– Anota aí! – rendeu-se ela, ditando pausadamente cada dígito.

André tem um metro e noventa e três de altura, como disse precisamente à Gabriela no primeiro encontro, e ela se arrependeu por não ter optado por seu maior salto alto. Lamentou-se também pelo vestido nada apropriado para uma noite típica de verão e pouco sedutor — em seu julgamento — para um menino tão bonito: malha espessa e mangas na altura dos cotovelos; colo encoberto pela gola careta; e saia de comprimento nem charmoso, muito menos ousado, deixando apenas joelhos e panturrilhas à mostra. Gabriela decretou em pensamento: “Certeza que isso só vai durar uma noite”.

Aos seus vinte e sete anos e com gostos refinados, Gabriela, por outro lado, nunca se sentiu à vontade em jantares românticos à luz de velas, em relacionamentos mais adultos do que cômicos ou ao desabotoar as calças de um homem que “sabe como tratar uma mulher”. Encantou-se ainda mais com André quando este confessou ter vinte e dois anos, não entender nada de cervejas e não ter concluído formação superior, até então. Aos olhos de Gabriela, era quase perfeição: a pequena cicatriz no lábio superior, a força das mãos – às vezes, descontrolada — ao redor de sua cintura e as histórias sem qualquer glamour.

É evidente que Gabriela não acredita em príncipes. Exceto pela forma física de deuses humanizados na escultura grega — ou quase isso —, André não teria o menor talento para o papel. Mas, ao terceiro encontro, Gabriela queria mais é ser Gata Borralheira. Ela acharia graça ao vê-lo embarcar pela primeira vez em um avião, teria orgulho ao apresentá-lo a seus amigos de infância, contaria em tom de piada como haviam se conhecido — “Ah, eu o achei na rua!” — e revelaria gentilmente a ele o que mais a satisfaz. Ela o ajudaria no trabalho de conclusão de curso e até toleraria a molecagem da turma de amigos. Era tudo tão claro!

Mas o quarto encontro não aconteceu. André disse que ligaria no domingo, mas só apareceu na segunda-feira, culpando a chuva pela preguiça invencível. No sábado, Gabriela voltou mais cedo de viagem com plano traçado: eles assistiriam a um lançamento que, em situações comuns, ela jamais tocaria na prateleira da locadora; ficariam largados sobre o tapete da sala, entre travesseiros e almofadas coloridas, e fariam sexo ardente, porém sublime, ali mesmo. Perderiam o final do filme e dormiriam só perto do amanhecer. Mas André preferiu não contrariar a mãe, que queria o filhinho em casa. Chegado mais um final de semana, Gabriela tornou-se segunda, até terceira opção, atrás de compromissos importantes de André. Primeiro, ela questionou o que seria verdade ou mentira entre todas as desculpas. Mas o fato é que isso não fazia diferença. As duas respostas estavam erradas.

A ilusão de Gabriela teria virado prato principal do dia, mas foi esmagada como o alho que nem mais se percebe no arroz depois de cozido. E ela diz, novamente, que tal estupidez jamais irá se repetir.

Sílvia Paladino é jornalista, com pós-graduação em jornalismo literário, e publicou esse texto antes no blog narravidas.wordpress.com, onde é possível ler outros textos de sua autoria.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Sem palavras

por Wagner Hilário

Numa dessas manhãs
Quero ver se não me traio
Se não alimento meus nervos
Se não atraio a desgraça
De ser mais falível
Do que gostaria
Quero ver se hoje ainda
Sou o que sonho em ser adiante
Assim fica mais fácil seguir
Não, não será simples
Mas será melhor
A cada sempre
Porque sempre
A felicidade não é cômoda
É laboriosa
Recompensa invisível
Não é Vale do Silício
Mas vale a eternidade
Não vale um tostão furado
Mas é um baita negócio
Nem furo de reportagem vale
Mas é uma boa notícia
Que palavra nenhuma pode contar

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Perspectiva de arrebol

por Wagner Hilário

Lembro-me de ter ouvido algumas vezes a palavra arrebol, mas nunca me dispus a saber o que significava.

Nunca li, mas sempre ouvi a palavra arrebol empregada em trechos de músicas, poemas ou prosas bonitos. Bonitos talvez não seja a palavra. Alegres. Alegrinhos, melhor ainda. Pra mim, o trecho alegrinho sempre prejudicou o encanto do verbete, e eu me desinteressava dele.

Mas quando me dispus a conhecer o que quer dizer, abrindo o dicionário eletrônico, descobri também que a palavra pode ser menos bela que seu significado. Ou ainda, que sua feiura fonética pode virar beleza quando sabemos o que quer dizer.

Arrebol: “Vermelhidão do nascer ou do pôr do sol”, ensina o Aurélio. Estou ansioso pra ver, ansioso pra usar a palavra... Arrebol, sempre gostei de você, mas não sabia seu nome.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Sentimento do Mundo

Por Carlos Drummond de Andrade

Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.

Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.

Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.

Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microscopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer

esse amanhecer
mais noite que a noite.


Poema extraído do livro Sentimento do Mundo (pág. 09), que integrou a Coleção Folha Grandes Escritores Brasileiros (2008), do jornal Folha de São Paulo, que conseguiu o direito de publicar a obra junto à Editora Record, titular do seu direito de edição.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Ao pé do morro

por Wagner Hilário

Queiroz beijou o chão do pé daquele morro depois de um ano vivendo nele. Há um ano quebrara as algemas, livrara-se dos grilhões, cicatrizara as chagas dos pés e da alma; sua pele respirava aliviada bafejada pela sombra e o ar condicionado do supermercado em que trabalhava a salvo do sol do velho engenho. Há um ano, o pouco que ganhava era seu e servia pra pagar a ração da prole. Ano antes, a comida que fiava do Patrão valia mais que o suor fertilizante que derramava no solo. Veio do norte fugido, devendo o olho da cara.

Durante doze meses, tudo no barraco era riso, era novo. O povo do morro era tal e como: a maioria também vinda de cima, escapulida de uma afetuosa tirania patriarcal. Boa parte dos que miravam daquele mirante a imensidão azul do mar Atlântico à luz do dia, que viam o Cristo de costas, mas ainda assim a iluminar a tenebrosa noite de fogos da periferia sobranceira, era cria do Coronel. Queiroz não demorou a se sentir em casa, no lar que, de verdade, até então nunca tivera.

A princípio estranhou os meninos, alguns com a idade de seu filho mais velho, a empunhar metralhadoras mais pesadas que enxadas, carrinhos de mão, fardos de arroz e feijão; mas mais leves que canetas, livros e, quem sabe um dia, fardão. Depois passou a vê-los como anjos tortos, derribados do Céu pra cumprir o papel de salvá-lo dos representantes do Patrão. “Apesar de que”, ele se lembrava de ver amiúde no morro homens de gravata que lhes salvaguardavam o direito de viver ali, mesmo sendo “geologicamente perigoso”.

— Geô’quê, rapaz! N’ tem coisa mais perigosa que a fome, não. O resto é ficha — dizia Queiroz.

Belo dia, a noite se avizinhava, o sol se despedia laranja, feito lava, e nuvens carregadas de cinza e eletricidade brotavam no céu, que antes fora inteiro safírico. Antes de mergulhar por completo no mar, já não se podia mais ver o astro diurno. O turno de Queiroz não tinha acabado e ele lamentou o trânsito que seguramente se formaria após a tempestade, que mais tarde chamaria de dilúvio. Do alto, caíram todos os oceanos da terra, um marulhar ininterrupto de ondas, só surfadas pela morte.

Pegou o ônibus pra casa às 11 da noite, mas já antes se afligia com o celular impassível da esposa, o diz que me diz que do cobrador dando conta de enchentes intermináveis e de deslizamentos que levaram dos morros os homens e seus barracos... Deu vertigem quando viu a confusão de luzes intermitentes das equipes de resgate e salvamento, quando viu o espanto dos que regressavam a suas famílias, bichos de estimação e televisão, quando viu o pranto dos que só podiam esperar o pior, já que no morro não se podia mais divisar como antes o que era vértice, encosta e pé.

A procura foi intensa. Queiroz esperava, como que desperto de uma noite rica de sono. Combatia o desespero, apelava ao sentimento paternal do bombeiro, que lhe concedeu o direito de procurar junto. Queiroz procurou, procurou, procurou até sua fé também deslizar. Depois de um soluço pálido de resignação, põe-se de joelhos e beijou, saudoso e sovado, o chão do pé daquele morro.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Ela e o vento

por Wagner Hilário

Diante de si, caminhos em profusão e encruzilhadas, um zilhão de alternativas e no gibão um cantil macerado com água, ingerida economicamente a cada gole bem espaçado. Na beira das vias há de haver um pé de sei lá o quê que lhe sirva de sustento, instante de satisfação, pra se esquecer dos lamentos.

— Pr'onde ‘cê vai moça? — pergunta o vento.

— Pensei que soubesse, mas quando pisei no cascalho, esqueci ao certo.

— Então me deixa soprá’ seu rosto, pra vê’ se devolvo pro ‘cê a memória.

— Pó’ soprá’.

— Vvvvvvvvvvvvvvvvvvvvvvvv... Lembrou?

— Lembrei.

— Então pr'onde?

— Vou pr'onde o vento sopra minha memória.

— Então já não precisa í’. ‘Tô aqui... lhe ventando.

— Mas você nunca para, vento, anda todo tempo, ‘tá em todo canto. Preciso segui-lo.

— Se ‘tô em todo canto, pare num qualqué’, poupe seus pés e seu pranto e ouça meu canto que é tato... macio.

— Ma’ com’é que não pensei nisso antes.

— ‘Tava andando feito tonta, não parou pra pensar nem sentí’ que ninguém se perde na estrada sem antes se perdê’ de si.