terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Manhã de Cão

por Wagner Hilário

O nome dele é Rui. Na rádio Sulamérica Trânsito, chamaram-no “ouvinte Rui”.

— Gostaria de alertar que no sentido-Rio de Janeiro da Dutra há um cãozinho magrinho tentando atravessar. Alguém precisa ajudar o bichinho a atravessar, porque senão teremos mais um bichinho morto na estrada. Seria importante que as autoridades tomassem alguma providência, pra impedir que isso aconteça.

A mensagem do Rui — mais ou menos o que se lê acima — fora gravada na caixa-postal da rádio e transmitida ao público ouvinte com a mesma seriedade com que a emissora informa sobre as condições dessa ou daquela via. Os ouvintes entram no ar, geralmente por gravações telefônicas, e dizem algo como: “peguei a via a tal e está horrível, quem puder, pegue outra” ou “peguei a rua x em alternativa à y e me dei muito bem, recomendo a todos que estiverem por esses lados”. Os apresentadores fazem o mesmo.

Porém, a mensagem do “ouvinte Rui” não tratava de salvar compromissos ou aplacar a impaciência dos motoristas. Rui não pedia um guincho da concessionária da rodovia pra desobstruí-la. Nenhum caminhão tinha capotado, nenhum motoqueiro tinha ido parar embaixo de carro nem dois moleques tinham colidido durante um racha. O problema não era dos homens nem de suas máquinas, mas do cão, ali, na piedade de sua magreza, bastante atrapalhado pelos homens e suas máquinas.

O Rui quis salvar o bichinho. Lógico, parar o carro na Dutra e descer pra ajudá-lo seria perigoso pra ambos. Assustado, o cachorro podia correr pro meio da rodovia e ser desossado por um... dois pneus. Clamou às autoridades em rede metropolitana de rádio, tratando o animal pelo diminutivo, como costumamos fazer com nossos jogadores de futebol, amigos e parentes. Não sei se foi atendido, mas ele e o sujeito que selecionou sua mensagem pra ir ao ar salvaram minha manhã no congestionamento.

Esse texto foi publicado anteriormente no blog www.narravidas.wordpress.com

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Mater dolorosa

Por Adélia Prado

Este puxa-puxa
tá com gosto de coco.
A senhora pôs coco, mãe?
— Que coco nada.
— Teve festa quando a senhora casou?
— Teve. Demais.
— O que que teve então?
— Nada não menina, casou e pronto.
— Só isso.
— Só e chega.
Uma vez fizemos piquenique,
ela fez bolas de carne
pra gente comer com pão.
Lembro a volta do rio
e nós na areia.
Era domingo,
ela estava sem fadiga
e me respondia com doçura.
Se for isso o céu,
está perfeito.

Esse texto foi extraído da obra de Adélia Prado intitulada Oráculos de Maio, editada pela Siciliano.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

A corça branca

Por Jorge Luis Borges

De que agreste balada de verde Inglaterra,
De que lâmina persa, que região arcana,
Das noites e dias que o nosso ontem encerra,
Veio a corça branca com que sonhei esta manhã?
Duraria um segundo. Vi-a cruzar o prado
E perder-se no ouro de uma tarde ilusória,
Leve criatura feita de um pouco de memória
E de um pouco de olvido, corça de um só lado.
As deidades que regem este curioso mundo
Deixaram-me sonhar-te, porém não ser teu dono;
Talvez numa esquina do porvir profundo
Volte a encontrar-te, corça branca de um sonho.
Também eu sou um sonho lúcido que perdura
Um pouco mais que o sonho do prado e da brancura.

Este poema foi extraído da obra Livro dos Sonhos, escrita em parte, compilada em outra por Jorge Luis Borges. Editada pelo Círculo do Livro em 1976, a obra foi traduzida por Cláudio Fornari.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Solenemorte


"Deus não castiga ninguém sem ter avisado"
Orígenes

por Wagner Hilário

Os senhores e as senhoras acompanhavam com atenção duvidosa a solenidade. A festa era deles e o mestre-de-cerimônia deveria fazer o máximo para agradá-los. Chegava a hora de convocar o Diretor da respeitável instituição, para que discursasse, declarasse sua imensa satisfação de contar com a presença de todos, dos amigos, parceiros, funcionários...

— Uma salva de palmas aos medíocres, cujo principal representante, eu tenho agora o desprazer de convidar ao palco.

As pessoas na plateia se entreolharam — riso amarelo nas caras. Devia ser alguma piada e em breve o palestrante daria conveniência ao inconveniente. Salvaria o Diretor e todos daquele desconforto com uma manobra humorística lisonjeira. Mas o silêncio do mestre-de-cerimônias era irrevogável, como o sorriso cravado em seu rosto a espera da chegada do Diretor e dos aplausos a guiá-lo até a bancada.

Então os aplausos começaram a brotar das mãos dos convivas, que pareciam não controlá-las, seduzidas pelo silêncio do mestre-de-cerimônias. As pernas do Diretor, de vontade própria, contras as ordens do seu cérebro, puseram-no de pé e o consagraram medíocre, conduzindo-o ao palco. Um desespero vão — como sempre são os desesperos — dominou seu íntimo, sem que seus olhos, seguros de si, como sempre, nada deixassem transparecer.

Os convivas aplaudiam sem parar e contrafeitos. Seus rostos, porém, resplandeciam os mesmos duvidosos sorrisos de outras solenidades oficiais, iluminados pelos fleches de um batalhão de fotógrafos que retratavam o Diretor em sua cruel caminhada. Ele chegou ao palco, subiu as escadas com passos firmes, recebeu o cumprimento do mestre-de-cerimônia, risonho a vida toda, que ainda lhe deu, antes de se retirar, um vigoroso aperto de mão.

— Senhoras e senhores, este instante é um sonho pra mim e espero que seja pra vocês também. — As palavras saiam de sua boca, movidas pela mesma força desconhecida que o havia carregado para aquele palco.

Antes de continuar o discurso, um golpe de luz dos holofotes fez sua vista estalar, doer e cegar, por instante. Uma lâmina de confusão cortou seu raciocínio-pronto, tirando-o do transe. Ele sentiu o suor lamber, frio, suas faces. Estava, como nunca, inebriado de si mesmo.

— Na verdade, senhoras e senhoras — a coragem típica desse estado já havia infectado sua língua —, eu preciso fazer uma correção: este instante não é um sonho, mas um pesadelo pra mim — ele, inteiro, era a coragem, e, quando notou que surgira em sua mão direita uma Colt 45, levou-a à cabeça e, diante dos sorrisos pré-moldados dos convivas, prontos para aplaudir qualquer cena, Pá!

— O que foi amor? Teve um pesadelo? — disse sua esposa ao vê-lo erguer de súbito o tronco e ficar sentado na cama.

Ofegante, retomando o ar que se esvaíra com a coragem onírica e tirando a camiseta molhada de suor etílico, o Diretor minimizou...

— Sonhei que nosso evento vai ser um fracasso.

— Relaxa, meu amor — disse sua mulher, ciente da mixórdia que nos toma a cabeça quando estamos entre o pesadelo e a realidade —, ele já aconteceu e foi um sucesso. Acabamos de voltar dele. Todos estavam felizes, a comida estava excelente e o seu discurso, maravilhoso.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Seu Zé comunica a todos

O texto que lerão abaixo é uma crônica publicada na revista em que trabalho como subeditor, a SuperHiper, uma publicação especializada em negócios para o setor supermercadista, mas que dispões de espaço para um bocadinho de arte e descontração chamado Cotidiano. Boa leitura!

por Wagner Hilário

– Pega! Pega! Pega!

– O que foi?

– O menino roubou o mercadinho do seu Zé.

– Meu Deus do Céu, quanta gente. Se pegar, não sobra nada do moleque.

Seu José sai dos fundos da loja, onde fica seu escritório. Descobre que o bicho pegou e que por isso o bicho vai pegar pra ele.

– Fica despreocupado. Tem uma molecada bem ligeira atrás do vagabundo.

– Como foi?

– Meteu um canivete na fuça da caixa e embolsou tudo o que tinha na registradora.

– Tava de olho fazia tempo, porque ele atacou justo numa hora que não tinha ninguém perto.

– E a menina? – pergunta seu José.

– Tá bem. Só o susto só.

Sofia, a caixa, tá num canto, tomando água e recobrando o fôlego que o assaltante também lhe roubou. Seu José sai da loja e segue pela rua na direção da fuga. No caminho, ele berra, sem esconder o sotaque de Portugal...

– Deixa-o comigo! Eu resolvo! Ninguém bate nele! Deixa-o comigo! Segura, só!

O rapaz já tá com a cara vermelha de socos, quando seu José chega. É magro feito cabo de vassoura e tá nitidamente assustado, embora menos do que ficaria alguém que não tivesse o costume de cometer infrações. Tá claro que não é o primeiro assalto do pequeno meliante. José olha pra ele com a severidade moral que seus olhos geralmente expressam. Robusto como poucos em sua idade, toma o magrelo pelo braço, brusco. O solavanco impressiona até mesmo aqueles que, há pouco, socavam a fuça do infeliz.

– Desculpa, moço.

– Q’cê vai fazer com ele? – pergunta um sádico, temendo a possibilidade de não poder assistir ao espancamento.

Mudo, seu José segue seu curso, arrastando o garoto magrelo, borrado de medo e já despido do seu canivete. Entra no mercadinho, atravessa a área de vendas, vai para os fundos da loja, entra no escritório e se tranca com marginal lá dentro. Trinta minutos depois os dois saem. Vão até onde se encontra Sofia; o garoto, com os olhos cheios de lágrima e arrependimento, se ajoelha, pede desculpas e lhe entrega o dinheiro roubado.

Depois, seu José comunica a todos...

– Este rapazinho já tem problemas demais e estava inventando mais um para sua própria cabeça... Não o entregarei a polícia. Ele mora na rua (não na nossa rua, digo no meio da rua), não tem pai nem mãe, mas pelo que me contou, não adiantaria muito tê-los. Sobrou-lhe o padrasto, que também não vale um trocado. Vai ficar aqui comigo, cuidando da segurança da venda, empacotando compra e ajudando a freguesia. Se me aprontar alguma, já disse que lhe capo...

– Mas o que é isso?! – berrou o sádico. – Manter entre a gente um criminoso desses é uma irresponsabilidade total.

Ruim dos ouvidos, seu José encarou o protesto vindo do grupo de curiosos como um elogio.

– Isto mesmo: responsabilidade social. Está na moda.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Dois Amantes

por Pablo Neruda

Dois amantes ditosos fazem um só pão,
uma só gota de lua na erva,
deixam andando duas sombras que se reúnem,
deixam um só sol vazio numa cama.

De todas as verdades escolheram o dia:
não se ataram com fio senão com um aroma,
e não despedaçaram a paz nem as palavras.
A ventura é uma torre transparente.

O ar, o vinho vão com os dois amantes,
a noite lhes oferta suas ditosas pétalas,
têm direito a todos os cravos.

Dois amantes felizes não têm fim nem morte,
nascem e morrem muitas vezes enquanto vivem,
têm da natureza a eternidade.

Poema extraído da obra de Neruda intitulada Cem Sonetos de Amor, editada no Brasil em 2002 pela L&PM, traduzida por Carlos Nejar.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Pobre dependência

por Wagner Hilário

Seu nome é Paulo, mas para os senhores de terno, gravata, cabelo lambido e palavras empoladas ele é joãozinho. Ele não sabe disso. Nem a gente importante sabe. É como o chamam no íntimo na hora em que dão pela presença dele. Isso porque joãozinho, minúsculo como é diante da grandeza dos nobres, é quase sempre ninguém. Só se lembram dele quando algo não funciona, quando o microfone não pega, quando um toró denuncia o serviço porco que fizeram no teto, quando a projeção pifa, quando a privada entope, deixando exposta a prova de que todos são joãozinho.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Vanessa Ferrari

por Wagner Hilário

Vencedora na vida e temente à morte — “só vence na morte quem perde na vida”, frase do papai —, Creusa Aparecida Ferreiro, com apenas dezessete anos virou Vanessa, boicotou o Aparecida, embora jamais tenha aberto mão de aparecer, e fez uma cirurgia plástica no sobrenome... Virou Ferrari e turbinou seu design.

Deu duro, sem perder a pompa, sem perder os olhos do tesouro prometido, em mapa mal-julgado, velho e encardido, gasto mesmo, de tantas as vistas que lhe passaram sobre e tiraram seu viço. Que viessem as tempestades, pensava, “os rumos do meu barco foram pintados com a tinta das estrelas, e onda nenhuma me fará voltar atrás”.

Da proa, esquecia a miséria íntima de sua cabine, e mirava mentiras e mais mentiras para além do horizonte, onde jamais ancoraria. Quem mesmo era? Quem queria ser, ou suas doloridas mazelas? De dia, era a personificação do sucesso aos olhos do seu mundo: mamãe e papai iludiam-se e ai de quem os desiludisse. De noite, ela pagava a dívida com o sol.

Queria crer nos méritos que ninguém tem; que o amanhã seria só verdade. Mas como, se já nem lembrava onde encontrá-la? Então, curtia os dias de inverno cheios de sol brando, da varanda gourmet de seu duplex, vencedora na vida e temente à morte.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Progresso e Eternidade

por Wagner Hilário
Apesar do progresso,
árvores ainda floram,
amoreiras
ainda dão amoras
e pássaros
salvam as buzinas
quando trinam sua flauta.

domingo, 26 de julho de 2009

Lance de Fé

por Wagner Hilário

Que força é essa a fé
que fere o medo
com a lança da certeza invisível,
que lança o homem além —
mar de felicidade,
esconderijo de grãozinho de dúvida?

Que luz é essa a fé
que clareia tanto que até cega,
suga o nosso ceticismo
e nos coloca em marcha
com pernas divinas?

Que fé é essa a força
que trazemos das vísceras às ideias
e que nos salva no último segundo —
verdadeira panaceia?

...

Que vou dizer depois de morto?
Que a eternidade é uma gota de vida
num porre de sonho.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Árido alarido

por Wagner Hilário

Verões cinzas
rasgam as tardes de dezembro

Meu cérebro inchado
de um trabalho em vão
pede folga ao céu
como um velho homem
esturricado e à beira da morte
pede água a um cacto
impassível e solitário
na tristeza do sertão

Pior que a inércia
é correr pro lado errado
dar a volta no mundo
cheio de esperança
e encontrar a mina de ouro
já sem o seu bocado

Carvalhos não adiantam
diante do fardo...
ou arruma a astúcia
que Deus soltou no vento
ou morrerá na penúria
sem nenhum alento

Quem me garante a vida
a não ser o tempo
Preciso ver entre os segundos,
mergulhar nos meus sonhos
e despertá-los concreto

Amanhã pode ser nuvem e
sem otimismo chulo
cabe a cada homem
garimpar seu sucesso

terça-feira, 2 de junho de 2009

Memória Afetiva


Pessoal, depois de um longo e tenebroso "inverno", volto a postar neste blog, que, algumas vezes, tardará, mas nunca falhará. O texto que lerão abaixo é uma crônica publicada na revista em que trabalho como subeditor, a SuperHiper, uma publicação especializada em negócios para o setor supermercadista, mas que, apesar da aparente sisudez da linha editorial dispões de espaço para um bocadinho de arte e descontração chamado Cotidiano. Boa leitura!

por Wagner Hilário

Pra Tomás, melhor que supermercados, só lojas de brinquedos... Em sua pueril visão, os produtos coloridos viviam e lhe pertenciam, todos. Talvez porque em sua cabecinha não existisse distinção entre ele e os objetos e seres que o cercavam. Assim, o seio da mãe, produto máximo em valor (prazer), se confundia com pistolas d’água cor de laranja, com narizes de palhaços e, nos supermercados, com os pedaços de carne embalados à vácuo nas prateleiras refrigeradas. Tomás arregalava os olhos e tentava alcançar aquela teta diferente com as pupilas, já que os braços não eram grandes o suficiente e as pernas não aguentavam seu corpinho. Mamava o ar, então. Como nada de verdade lhe vinha à língua para saciar sua sede pelo prazer materno, abria o berreiro.

Mais velho, já sabendo distinguir o que era o quê daquilo, mas ainda assim querendo divertir-se com tudo o que via, a presença de Tomás era invariavelmente um estorvo pros pais e uma faca de dois “legumes” pro supermercadista. No hortifrúti, colocava a laranja no chão e chutava, dizendo que era a “boia de fulebó”. No bazar, mergulhava na piscina de plástico sem água. Quando o pai ralhava, ele corria pelos corredores com os braços abertos e derrubava os concentrados de limpeza rindo, achando que era pega-pega. Na hora de ir embora, queria porque queria o chiclete cor-de-rosa choque, com a cara feia do Ronaldinho Gaúcho estampada, exposto no display do caixa. Pros pais, só prejuízo...

Passada a idade em que ir ao supermercado nem pensar, porque era bem melhor jogar bola com a galera descalço na rua de paralelepípedo da casa da vó, Tomás, que agora mamava em outros bicos, passou a ver graça de novo nos supermercados, onde encontrava cerveja mais barata pràs festas que dava em casa, na ausência dos pais, aos fins de semana, pra desespero dos vizinhos. Foi numa dessas, quando já estava no último ano de faculdade, que ele e Cláudia deixaram de ser apenas amigos. Ele prometeu que assim que festa terminasse a levaria pra casa, ela fingiu que acreditou e eles aproveitaram o vazio do lar pra preenchê-lo de paixão. Três meses depois descobriram que o ventre dela se preenchera de vida. Nove meses depois Sofia nasceu.

O começo foi derrapante: falta de grana, falta de tempo, falta de tudo, menos de amor... Assim se adaptaram e numa das inúmeras idas do casal ao supermercado, Sofia, com dois anos, saiu correndo entre as araras da seção de têxtil da loja, deslumbrada com as cores das roupinhas penduradas. Parou e apontou pra um vestidinho. “Quelo eche, papai.” Cláudia nem notou, entretida que estava com outras peças, mas a cena mexeu no inconsciente de Tomás, que sentia, no profundo desconhecido de sua vivência, já ter vivido aquele instante (ou pelo menos algo parecido). Olhou pra esposa e, dominado por um ciúme paternal besta e incompreensível pros outros, disse a Cláudia:

– Enquanto a Sofia estiver sob nossa responsabilidade, não vai passar uma noite longe da gente.

Cláudia torceu o nariz. Sem responder nada, olhou pra menina, que namorava a roupa, pegou-a pela mão e depois pegou o vestidinho... Foram juntas pro caixa.

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Manhãs e Destino

por Wagner Hilário

Meu destino se cumpre
toda noite

quando deito meu lábio
exausto de vida
no pêssego-rosto
sedoso de sono
da minha esperança infantil

Quando deito meu corpo
desfeito do dia
no estrado da saudade
acolchoado de paixão –
humilde panteão
que me revigora as forças
e me devolve o coração

Então, quando o sol rebenta
já posso me pôr a caminho
suave, sem pressa
em busca do meu destino

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Suave princípio

por Wagner Hilário

Se o dia deles
é noite cá
que mal há?
Não há diferenças
já que a harmonia
reflete lunar
o astro que rubro
reverbera de lá

Simples
como o transcender
zen
Pois não se tira
coelho da cartola
nem se faz um pão
virar cem...

É judô
puro seryoku zenyo
e jita kyoei
A suave via
do ceder
pra todo mundo
vencer

Judô: Caminho Suave
Seryoku Zenyo: mínimo de esforço, máximo de eficiência
Jita Kyoei: bem-estar e prosperidade mútua

terça-feira, 24 de março de 2009

Desaceleração

Pessoal, em virtude da forte demanda de trabalho que terei neste mês, o blog será atualizado, provavelmente até o fim de abril, uma vez por semana.

A próxima atualização será feita na segunda-feira que vem.

Conto com a compreensão e a leitura de todos.

Att., Wagner Hilário.

sexta-feira, 20 de março de 2009

Manuscrito

por Wagner Hilário

Escrevo a vida à mão
caneta esferográfica
trêmula imperfeição

Rasuro o tempo
palavras precipitadas
Só não me atiro do precipício
porque sei pedir perdão

Minha caligrafia é pensa
meu juízo, prejuízo, benefício
Frágil identidade

Escrevo insone minha oração
Assumo de punho
a autoria dos meus pecados
e méritos

Aguardo inquieto
a redenção.

quarta-feira, 18 de março de 2009

Crônica dos Pães

por Lourenço Diaféria

Certa vez uma criança caiu do vigésimo andar de um prédio, em São Paulo. Seu corpo bateu na calçada e o baque assustou as pessoas que viram a queda. Mas a criança se levantou. Conduzida a um hospital, os médicos custaram a acreditar que nada lhe houve acontecido. A criança ficou em observação e recebeu alta. Está viva até hoje.

A cidade esqueceu o fato. Eu o relembro agora, porque todos os dias vejo o prédio de onde a criança caiu. É um edifício com muitas janelas escuras, onde se penduravam varais com roupas de cima e de baixo. Nas tardes luminosas, ele se ressalta compacto contra o fundo fuliginoso do horizonte, onde se diluem chaminés, telhados e crista da serra.

Os apartamentos do prédio são cubículos habitados pela tripulação anônima das ruas; gente quase sempre sem genealogia e sem bens de raiz. Gente que tem como único patrimônio o cotidiano áspero. No edifício calcinado da várzea, residia a criança singular, que rolou de sessenta metros de altura e continuou viva. Cada vez que encaro esse edifício enfavelado, pergunto-me por que os milhares de olheiras e gente amarfanhada. E eu, que não acredito em marcianos, vejo-me forçado a pensar que dali voou um anjo sem asas, e outra vez se renova minha mais descarada crença no milagre. Não que eu dependa desse milagre urbano e atual para acreditar nos antigos e futuros milagres. Não é isso. Sei que as leis da Física estão aí justamente para explicar que um corpo de criança, baixando do vigésimo andar em velocidade crescente, pode Ter atenuada sua queda ao bater nos fios de iluminação – como aconteceu – e chegar, vivo, de encontro ao chão de concreto. E continuar vivo e esperto como o corpo de uma criança alada. Mas não é a
sobrevivência da criança que me informa o milagre. É saber que a Física também gosta de crianças.

O mal dos cronistas é que eles se impressionam com coisas pequenas e passageiras. Posso dar exemplos. Dos bons cronistas que conheço, gosto especialmente de quatro. A rigor, não são nossos contemporâneos, embora sejam atualíssimos. E cada vez mais atualizadíssimos, à medida que aumentam a angústia e a perplexidade da humanidade. Os cronistas a que me refiro chamam-se Mateus, Marcos, Lucas e João. Talvez nunca tenham se preocupado demais com pormenores históricos; e penso que jamais seriam convidados para fazer parte da associação dos jornalistas científicos. Eu diria que eles são cronistas das intenções. Li muita coisa deles, e me parecem totalmente autênticos. Em suas palavras, queima-se uma chama intensa e viva. Diria que eles iluminam o mundo. Admira-me até que os jornais, indiscutivelmente, os maiores redutos de cronistas do País, não tenham tido ainda a ideia de contratá-los. É uma pena, sem dúvida. Mas é essa ausência que me permite, hoje, aproveitar um dos temas mais fascinantes focalizados pelos quatro escritores. ... Trata-se da multiplicação dos pães.

Muitos leitores, que não acreditam nem em milagre de criança que cai do vigésimo andar e não morre, ficam intrigados como as pequenas divergências de palavras no mesmo relato desses cronistas. Mateus e Marcos narram duas multiplicações dos pães. Lucas e João se limitam a uma única versão. Para quem não gosta de cronistas, ou de milagres, essa falha põe tudo a perder. Mas o importante no caso é o fundo de verdade da narrativa. De modo que não me custa nada fingir de cronista e tentar contar esse mesmo fato da multiplicação dos pães, como se não tivesse existido milagre algum. Ou antes: como se tivesse acontecido um milagre ainda maior do que o discretamente narrado pelos quatro cronistas do Evangelho.

Foi assim: a multidão tinha se reunido para ouvir o homem que anunciava a justiça, o perdão, o amor e a ressurreição. Portanto, a barra não era fácil. Num certo momento, o homem que pregava fez uma pausa e avisou que estava na hora de aquela multidão comer. Muitos dos ouvintes haviam vindo de longe. Os amigos do homem, ressabiados, explicaram que não havia alimentos para todos.

O homem que pregava a justiça sorriu quando viu que um menino na multidão oferecia seus cinco pães e dois peixinhos, que havia trazido na matula. Esse menino devia Ter mais fé que os adultos. Com esse pão e peixe, o homem pediu que todos se assentassem na relva, em grupos. Ele ia dividir o pão e o peixe entre todos, e cada um comeria uma migalha, uma isca de peixe. Mas, então, os adultos se tocaram e imitaram o gesto do menino. E eis que um tira de seu alforje mais um pão, e mais um peixe; e outro segue-lhe o exemplo; e assim por diante. E cada um cedeu o que havia trazido só para si e para sua fome. Daí a pouco estavam todos comendo pão e peixe, e um elogiava o peixe do amigo, e o pão do vizinho, e ficaram fartos, alegres e ainda palitavam os dentes de satisfação. E apanharam-se as sobras, para que nada se perdesse, pois daí a um nada chegariam os lixeiros, e recolheriam cestos de pães e peixes e iriam para suas casas contando às mulheres que, à beira do lago de Tiberíades, havia um homem que distribuía com igualdade, dividia com sabedoria e anunciava a vida eterna.

Esse texto foi extraído do endereço eletrônico http://www.amoliteratura.hpg.ig.com.br/diaferia1.htm

segunda-feira, 16 de março de 2009

Sonâmbulos

por Wagner Hilário

A cidade são carros
e asfalto
solo lunar
pretensamente pavimentado

Lágrimas de inverno
correm
cadentes
os olhos do metrô

O dia é manhã cedo
As nuvens escuras
fazem-no
entardecer sombrio

Barulho
ferro atrito
trilho motor

Silente sonolento
o homem segue
as voltas
do mundo

sexta-feira, 13 de março de 2009

História Alegre

por Wagner Hilário

Jorge queria escrever um texto alegre, que narrasse uma história de risos. Estava cansado da tristeza da sua prosa, de seus versos sem vento de manhã, sem caneta que descrevesse o dia. Era tudo tão noite que de claro só as luzes piradas das danceterias e a ideia de que o mundo é um fado e que a felicidade não passa de uma pobre mania dos ignorantes. E assim o raio da inspiração não vinha, e sua alegria oca de malandro latino já nem pra fazer som lhe bastava.

Até que do ventre da solidão ele foi tirado à luz da carência. Descobriu-se frágil como um recém-nascido, fruto do prazer feito para tolerar a tristeza, fruto de um enlace sem amor, sem enlevo, mas que ainda assim era mais que um sopro qualquer de vento ou de brisa, era inspiração cristalina, mais bela que a de qualquer artista, a baforada da esperança de Deus, a que nos habituamos chamar de vida. E se Deus lhe jogara nos braços aquela criaturinha, depois de tanto Lhe pedir alegria que lhe valesse efusiva narrativa, pensou que ali estivesse o princípio do roteiro, a pista de decolagem de sua história.

Foi o tempo de nutrir a cria o que a mãe-loba passou ao lado do pequeno. Não se sabe ao certo o motivo do abandono, quem sabe o fato de ela própria ser órfã de pai e mãe e criada pelos avôs maternos, cuja bronca da filha não lhes deixou na barriga do afeto líquido para alimentar a neta de amor. Então, Jorge, que apesar da tristeza de poeta, sempre fora amado, lembrou-se, no difuso inconsciente, do carinho em seu reservatório de emoções e não titubeou em banhar de paternidade seu menino pelo tempo que fosse necessário, até que se tornasse um sujeito grande e feliz.

Mas como isso, se nem mesmo ele era capaz de contar uma história alegre? Como, se ele não se via feliz? Não sabia, mas daria um jeito. Assim, por longos anos, esqueceu-se da paranoia da dita história alegre e se entregou ao filho como um suicida se entrega à morte. Esqueceu-se da própria tristeza, dando-lhe papel e tinta guache para que aprendesse desde cedo a pintar a própria vida com as cores mais coloridas. Falou-lhe de um Deus em que antes não cria, mas que depois do pequeno passou a cultivar. Falou-lhe da glória de ser humilde e da magia de transformar a própria realidade, que moram no peito dos homens, mas tão difíceis de encontrar.

O pequeno se tornou meio-médio, depois médio, depois meio-grande e finalmente cresceu. Como o pai, era apaixonado pelas palavras, e tanto de falar como de escrever gostava muitíssimo. O pai sabia e, em silêncio, a tudo lia, já que o menino com ele não tinha segredos, e vice-versa. Jorge então se convencia: a tristeza, pro poeta, é sina. Até que certo dia o menino lhe entregou um texto extenso. Ele devorou as páginas e conteve as lágrimas nos últimos parágrafos. Olhou pela janela o céu poente, viu azul, viu roxo, viu o laranja do sol tingir as nuvens, viu as cores da pintura de seu menino, que naquele instante entrou no cômodo...

– É a história do pai, né, filho? É uma história alegre.

quarta-feira, 11 de março de 2009

Cordas de cores

por Wagner Hilário

Uma manhã solta no vento
traz cordas de aço
harmônicas
como num toque clássico

Atido à letra entendo
que o cancioneiro é bravo
faz de uma canção brega
um belo espetáculo

Nina neném com cólica
e põe a mamãe cansada
num plácido leito de fadas

Mesmo a velha senhora
com bico de papagaio
ergue-se no tom da nota
e não reclama do fardo

De fato, numa canção
antes do bom arranjo
do palavreado, vale o coração

Ou, ainda

numa manhã cinza e fria
sem horizontes
cabe a vossa pupila
colocar as cores

Muito obrigado!

segunda-feira, 9 de março de 2009

Um homem no trânsito (descrição)

por Wagner Hilário

Olhos atentos ao fluxo de automóveis que no instante não flui. Uma caneta vermelha Bic – vê-se a marca e a cor pela tampa – no bolso da camisa branca que pela aparente textura é nova, sem listras nem detalhes, lisa. Contudo, a maneira como a traja confere à veste uma impressão de velha. Os três botões mais próximos ao pescoço, abertos. O peito parcialmente visível traz junto de si um óculos de grau, de armação antiquada e cor vinho, pendurado por uma corda preta que lhe envolve o pescoço. Esse aspecto mais a barriga sobressalente na camisa dão-lhe um ar de viciado em jogo de cavalos, como se estivesse diante de uma televisão que transmite uma prova despida de glamur, damas bem vestidas, charutos e cartolas. Só vale mesmo pra quem aposta.

O rosto do homem é vermelho do clima e carnudo, mas ainda assim seria exagero chamá-lo de gordo. O nariz é fino, a boca também. A atenção do olhar ao trânsito em momento algum sugere tensão, irritação, nervosismo. As sobrancelhas e as pálpebras crispadas devem-se ao sol mais soberano e luminoso do que nunca nesta manhã de março, de céu azul e rasas nuvens brancas, apenas levemente encardidas em suas extremidades, em virtude da poluição paulistana.

Ele está sentado ao volante de um Volkswagen Parati prata um ponto oito. A exemplo do motorista, o veículo não é novo nem velho. Ao ver que os carros quase apinhados à sua frente progridem, em tênues solavancos, como se soluçassem para evitar as milhares de batidas possíveis entre si, ele adquire uma posição mais ereta ao volante – insuficiente para minimizar a saliência abdominal –, engata a primeira e segue o séquito caótico dos carros recém-nascidos para mais um dia de trabalho na frenética e em constante colapso cidade de São Paulo.

sexta-feira, 6 de março de 2009

Espelho das águas

por Wagner Hilário

A poesia
ainda me dá mais prazer
O verso
é como um lance da sorte
se arroja e
num facho de luz
germina
epidemia de sensações
risos e lágrimas

É como um corte
de navalha
no céu
rasga o véu azul
no ponto vital
jorra ao léu
um delicado arco-íris

O poeta
sabe tocar o infinito
descarta
aeronaves modernas
se posta
num canto rústico da terra
e, à beira de uma laguna
beija o universo
no espelho das águas

quarta-feira, 4 de março de 2009

E, de repente...

por Rubem Alves

E, de repente, tudo acabou. A Bolsa de Nova York quebrou. Meu pai, exportador de café, perdeu tudo. Não conseguiu fazer as transformações alquímicas por meio de palavras a que estava acostumado. Sua magia era fraca para tragédia tão grande.


Esse texto foi extraído da obra O velho que acordou menino [infância], de Rubem Alves, publicada, em 2ª reimpressão, pela editora Planeta, em 2007.

segunda-feira, 2 de março de 2009

O Poeta Aprendiz

por Vinícius de Moraes

Ele era um menino
valente e caprino
um pequeno infante
sadio e grimpante.
Anos tinha dez
e asinhas nos pés
com chumbo e bodoque
era plic e ploc.
O olhar verde-gaio
parecia um raio
para tangerina
pião ou menina.
Seu corpo moreno
vivia correndo
pulava no escuro
não importava que muro
e caía exato
como cai um gato.
No diabolô
que bom jogador
bilboquê então
era plim e plão.
Saltava de anjo
melhor que marmanjo
e dava o orgulho
sem fazer barulho.
No fundo do mar
sabia encontrar
estrelas, ouriços
e até deixa-dissos.
Às vezes nadava
um mundo de água
e não era menino
por nada mofino
sendo que uma vez
embolou com três.
Sua coleção
de achados de chão
abundava em conchas
botões, coisas tronchas
seixos, caramujos
marulhantes, cujos
colocava ao ouvido
com ar entendido
rolhas, espoletas,
e malacachetas
cacos coloridos
e bolas de vidro
e dez pelo menos
camisas-de-vênus.
Em gude de bilha
era maravilha
em bola de meia
jogando de meia-
-direita ou de ponta
passava da conta
de tanto driblar.
Amava era amar.
Amava sua ama
nos jogos de cama
amava as criadas
varrendo as escadas
amava as gurias
da rua, vadias
amava suas primas
levadas e opinas
amava suas tias
de peles macias
amava as artistas
das cine-revistas
amava a mulher
a mais não poder.
Por isso fazia
seu grão de poesia
e achava bonita
a palavra escrita.
Por isso sofria.
Da melancolia
de sonhar o poeta
que quem sabe um dia
poderia ser.

Esse poema foi extraído da obra Para Viver um Grande Amor - Crônicas e Poemas, que fez parte da Coleção Folha - Grandes Escritores Brasileiros, publicada em 2008

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

O veludo dos sonhos

por Wagner Hilário

Dizem que quando era filhote, caiu da laje e bateu a cabeça. Sobreviveu por um milagre, mas houve sequelas: tornou-se epiléptico. Era um jovem hiperativo, corria enlouquecidamente atrás dos carros dos namorados de Leila. A moça não podia deixar o portão aberto nessas ocasiões. Ao ouvir a partida do carro, ele se pirulitava até onde o fôlego alcançasse. Ia longe, atrás do automóvel.

Quando Leila o escolheu, Tob batalhava contra os irmãos por uma das tetas da mãe. Leila não sabia da queda da laje. A não ser as orelhas endurecidas pros lados, em vez de pra cima, como uma asa-delta, não havia indícios da avaria.

Um vira-lata descendente de pastor. Adulto, era forte e maior do que a média dos cachorros sem raça. Era amarelo-ouro em quase toda a cara, na barriga, na parte posterior das costas e no rabo. No dorso, era levemente preto (se é que algo pode ser levemente preto).

Como costuma ocorrer, a menina escolheu o cão, mas seu pai, seu Lúcio, era quem cuidava, quem o alimentava. Tob então o escolheu para dono, somente a ele, mais ninguém. Mas a desobediência congênita, mais a epilepsia e a dermatite úmida (mais essa) somadas à impaciência de seu Lúcio entornaram o caldo daquele quase amor entre homem e bicho.

Seu Lúcio se estorvava com a história de ter de regular sua rotina com os horários dos remédios do cão e de limpar as fezes que impregnavam o azulejo claro do quintal. Gostava mesmo era de curtir a aposentadoria na frente da tevê. É verdade que dona Isadora o ajudava, mas nenhum dos dois dispunha de disposição pra levá-lo pra passear, pra dar carinho, atenção.

– Eu não, Leila – gritava seu Lúcio, menos por irritação do que pelos problemas de audição. – Cê é que tem de fazer isso. A sua mãe diz que eu maltrato o cachorro, mas ela não faz nada também, nem você. – Falava como raramente; era sujeito de poucas palavras. – Por que ocê não leva ele pra passear?

Leila levava no começo, mas depois que passou a estudar e trabalhar sacrificou o tempo de Tob. Seu Lúcio até tentou algumas vezes, mas apesar dos problemas, o cão era forte pra ele: qualquer cadela no cio no caminho era um enorme risco ao magro seu Lúcio.

Então, o alegre Tob da infância virou um adulto triste, embora jamais agressivo. Passava a maior parte do dia dentro da casinha. A vitalidade da juventude que o fazia subir as escadas do sobrado e saltar na cama de Leila logo pela manhã se esvaíra. A epilepsia tirava dele os reflexos. Corria desengonçado, sem aerodinâmica, apesar da asa-delta. Pior do que isso, só a dermatite: o fedor de pelo e couro molhado o afastava dos já escassos carinhos.

O tempo urgiu, e Leila de menina passou a moça universitária que passou a mulher mãe e esposa. Deixou a casa dos pais e o fedido Tob. O certo é que o cão tinha mais de dez anos quando sumiu da casa de seu Lúcio. Teve ainda a oportunidade de conhecer o filho de Leila, o único que àquela altura o acariciava, ao menos até algum adulto se dar conta da carinhosa peraltice e o afastar do mau cheiro e das chagas de Tob.

Numa das visitas de fim de semana à casa materna, Leila deu conta da ausência de Tob, o quintal não tinha merda alguma, nem urina e o cheiro de couro e pelo molhado tinham desaparecido.

– Mãe, cadê o Tob?

– Ah! Seu pai diz que ele fugiu. Como, eu não sei. Depois de velho, o Tob não saía da porta de casa. Impossível ter fugido. Tem gente na rua que viu seu pai colocar o bicho dentro do carro. Tem até gente que viu o cachorro lá pro lado do matagal. Fui atrás, mai nada.

– Ah, mãe! Não acredito nisso... Meu pai tentou tratá-lo de tudo quanto foi jeito, não faria isso – disse Leila ao marido, que olhava condoído o quintal... Lucas, o filho do casal, brincava no chiqueirinho.

Tob adorava passear de carro. Fazer com que entrasse no automóvel era fácil. Conhecia tão bem o barulho do carro que a um quarteirão de distância seria capaz de identificá-lo e latir pelo retorno do dono. Era arriscado acusar seu Lúcio, embora sua frieza dessa margem pros boatos da vizinhança. Não lamentava nem parecia feliz com o sumiço do cachorro. Fosse lá o que sentisse, sentia em silêncio.

O fato é que ninguém teve coragem de perguntar ao velho se ele havia ou não jogado o cachorro doente na rua.

Num Sábado de outono, no entanto, seu Lúcio acordou às seis da manhã, tomou banho, colocou a sua bota bege antiquada e manchada de tinta de parede, uma camisa quadriculada e uma calça jeans com as barras dobradas mostrando as canelas. Desceu, preparou o café e encheu as jarras. Na verde, café com açúcar; na vermelha, sem. Como sempre.

Pela porta da cozinha, a luz do sol recém-nascido passava brilhante, iluminando o cômodo. Seu Lúcio apanhou uma sacola de feira, onde colocava os pães e frios que comprava. Passou pela porta da cozinha e apontou no corredor que daria no portão. Banhado pela luz da manhã, ele divisou Tob correndo no corredor; o corpo coberto de um pelo lustroso, quase camurça, limpo e belo como nunca. Ele estava alegre, feito filhote...

Seu Lúcio abriu os olhos, com a voz alta que vinha do rádio-relógio marcando seis da manhã e o despertando do sono. Cumpriu o ritual diário: banho, roupas, café, padaria, mas agora sem encontrar Tob no quintal.

Mais tarde, à mesa:

– Tive um sonho bonito – disse a Isadora.

– Que sonho?

– Sonhei com Tob.

– É? E aí?

– Ele corria pelo quintal, aí no corredorzinho. Não parecia doente. O pelo era lindo e brilhava no sol. Eu nem queria acordar.

Sob o olhar desconfiado de Isadora, tomou um gole do café.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Escusas

Peço desculpas pelos dois dias (segunda e quarta-feira) sem postagem e pelo atraso na postagem da última sexta. O atraso foi fruto de problemas com a Internet, mas a ausência de postagens se deveu a uma certa negligência carnavalesca que, prometo, não se repetirá nem nos próximos carnavais.


Para manter uma certa ordem, informo que o próximo texto será postado na sexta-feira e será uma prosa. Conto com a compreensão de todos.


Att., Wagner Hilário.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Prece

por Fernando Pessoa

Senhor, a noite veio e a alma é vil.
Tanta foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos hoje, no silêncio hostil,
o mar universal e a saudade.

Mas a chama, que a vida em nós criou,
se ainda há vida ainda não é finda.
O frio morto em cinzas a ocultou:
a mão do vento pode erguê-la ainda.

Dá o sopro, a aragem – ou desgraça ou ânsia –,
com que a chama do esforço se remoça,
e outra vez conquistemos a distância –
do mar ou outra, mas que seja nossa!

Poema extraído do livro Mensagem, edição de 1999, da Companhia das Letras.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

O Possuído

por Wagner Hilário

Aos olhos da maioria, e também aos olhos de muitos dos seus entes nem tão queridos assim, Zé é um Zé Ninguém. Não preside nenhuma multinacional, não enriqueceu nem por bem nem por mal e tão-pouco foi um famoso jogador de futebol antes de se entregar ao vício. Se o tivesse feito, sua história talvez fosse outra: a beberrice lhe seria perdoada e encontrariam em sua infância uma razão para o adulto irresponsável que se tornara. O fato é que trabalha como vendedor de imóveis quase a vida toda numa imobiliária vagabunda, mais para pagar a birita do fim do dia do que para pagar o aluguel; mais para desfrutar da companhia dos amigos etílicos do que para assegurar as três refeições diárias.

– Que história tem esse pra contar? É um zero à esquerda – diziam os últimos exemplares de uma espécie humana em extinção: as senhoras-do-parapeito.

Mas ele não pensa assim, é óbvio. Não chega a se orgulhar da vida que leva, mas vê nela algo bíblico, talvez pelas precárias e questionáveis associações que faz entre as parábolas da Sagrada Escritura e sua conduta... Mas que diabo é isso? – você deve se perguntar. O cachaceiro lê a Bíblia? Sim. Lê e acredita piamente em tudo o que está escrito. Fazer o que manda o texto são outros quinhentos, mas cobrar dos outros, é com ele mesmo. Serviria para eclesiástico. Seria, no entanto, incapaz de cometer alguns tipos de pecados, como usar a Bíblia para engabelar a boa-fé das pessoas. Aliás, esse pecado é o que mais o incomoda.

Por isso, de uma passagem, não da Bíblia, mas de sua própria vida, ele se orgulha mais. Em seu repertório de histórias, das quais em regra ele é o herói, esta é uma das poucas verdadeiras, mesmo que isso pouco importe. Afinal, em balcão de bar a veracidade dos causos não significa nada se comparada com a excitação que proporcionam.

Num dia modorrento, em que o sol mais que aquece, derrete até telhado de templos, Zé voltava da imobiliária com o saco na lua da ociosidade que lhe tomara o dia todo. “A crise, a crise, a crise... Vou tomar uma.” Pra quem gosta, qualquer desculpa vale, imagine o estouro dos derivativos. Parou primeiro no boteco que ficava em frente à imobiliária, tomou uma com limão e depois emendou uma cervejinha pra balancear. Com as bochechas vermelhas de alegria e a boca cheia de coragem, seguiu a noite (que ainda era dia por causa do horário de verão), disposto a parar no bar que ficava a um quarteirão de seu apê.

A poucos metros do bar, porém, Zé ouviu a voz de Deus (nesse ponto, eu acredito que haja um pouco de ficção no relato do herói, que aqui replico à minha maneira) vir de uma dessas franquias da fé, que trazem na fachada nomes grandiosos, etéreos, e que trazem dentro louvações, exorcismos e aparelhos que aceitam cartões de crédito e débito das mais diversas bandeiras. Zé sabia que ali dentro ele tinha uma missão a cumprir. Iluminado pelo álcool, entrou no templo.

Chegou bem na hora do exorcismo, sentou-se em um dos poucos assentos vazios e ficou observando. Era uma moça, sacolejava sob a influência do demo; revirava o zoio; difamava o público; alguns se horrorizavam com os impropérios, outros vestiam a carapuça e uns reconheciam que o espírito não dizia nada com nada. Mas isso durou apenas alguns segundos, embora parecesse uma eternidade aos presentes. Durou até que a mão milagrosa do pastor finalmente arrebatou o infeliz do corpo da jovem.

A moça, amparada por seu “salvador”, foi levada até os assentos da frente, a no máximo dois metros de Zé, que pensou: “vou ficar de olho nela”. Foram mais de dois minutos fitando-a sem pestanejar (exagero concedido ao herói). Nesse meio-tempo (ele garante) ela percebeu que era observada e olhou umas cinco vezes para ele completamente sem graça, cara de quem foi pega com a boca na botija.

– Alguém que recebe o coisa-ruim não recupera assim, né não? – contava-nos, cheio de razão.

– Não tem como! – respondíamos, catedráticos no assunto.

Mas ele ainda não havia realizado o grande feito. Voltemos ao templo...

Convencido de que a moça era mais atriz do que crente, voltou sua zonza atenção para o discurso do pastor:

– Porque essa dor, senhores, esse diabo, que com muito custo a gente arranca das pessoas de bem como essa moça, é o responsável pelas maldades do mundo, pelas maldades que cometemos ao longo do caminho, quando estamos distantes de Jesus e perto do mundo mundano... Eu mesmo já fiz muita coisa errada: já fui maconheiro, já fui drogado, já roubei, já passei droga... Mas hoje... hoje eu posso dizer que...

Antes que o pastor pudesse completar, Zé foi impelido por força maior, força que pode ser atribuída a uma porção de fatores, mas que na minha visão de narrador (embora pouco onisciente), veio da sua natureza destemperada e inconsequente. Ergueu-se em meio aos fiéis e disparou diante de uma plateia estupefata, incrédula depois e indignada mais tarde...

– Hoje, pastor, hoje o senhor é estelionatário.

As palavras lhe saíram tortas, como era de se esperar de um bêbado, mas a condição atlética demonstrada ao correr enviesado em meio aos fiéis deixando os seguranças para trás surpreendeu a ele próprio. Foi por pouco que ele escapou. Quando os seguranças se aproximavam, Zé alcançou o bar. Os brutamontes se intimidaram com a grande quantidade de beberrões no boteco. Acharam que não valia a pena entrar lá e causar tumulto maior. No íntimo, talvez até concordassem com o insulto do Zé.

Uns trinta minutos depois, quando conseguiu recobrar o fôlego, ele nos contou o que ocorrera. A princípio ficamos indignados. Pensamos em ir ao templo dar um jeito nos seguranças, mas ele nos convenceu que não era prudente. Tomamos mais umas; brindamos o Zé.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Serenata

por César Magalhães Borges

Sei que o sol
que agora parte,
fez a sua parte,
repartiu-se em luz

Sei que o céu,
neste fim de tarde,
fez a sua parte,
repartiu-se azul

Peço que a noite
mire-se no dia,
inche-se de lua
e faça adormecer

Peço que os sonhos,
pela madrugada,
gestem outros sóis
e renasçam dias
vestidos de azul...

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Separação

por Vinícius de Moraes

Voltou-se e mirou-a como se fosse pela última vez, como quem repete um gesto imemorialmente irremediável. No íntimo, preferia não tê-lo feito; mas ao chegar à porta sentiu que nada poderia evitar a reincidência daquela cena tantas vezes contada na história do amor, que é a história do mundo. Ela o olhava com um olhar intenso, onde existia uma incompreensão e um anelo, como a pedir-lhe, ao mesmo tempo, que não fosse e que não deixasse de ir, por isso que era tudo impossível entre eles.

Viu-a assim por um lapso, em sua beleza morena, real mas já se distanciando na penumbra ambiente que era para ele como a luz da memória. Quis emprestar tom natural ao olhar que lhe dava, mas em vão, pois sentia todo o seu ser evaporar-se em direção a ela. Mais tarde lembrar-se-ia não recordar nenhuma cor naquele instante de separação, apesar da lâmpada rosa que sabia estar acesa. Lembrar-se-ia haver-se dito que a ausência de cores é completa em todos os instantes de separação.

Seus olhares fulguraram por um instante um contra o outro, depois se acariciaram ternamente e, finalmente, se disseram que não havia nada a fazer. Disse-lhe adeus com doçura, virou-se e cerrou, de golpe, a porta sobre si mesmo numa tentativa de secionar aqueles dois mundos que eram ele e ela. Mas o brusco movimento de fechar prendera-lhe entre as folhas de madeira o espesso tecido da vida, e ele ficou retido, sem se poder mover do lugar, sentindo o pranto formar-se muito longe em seu íntimo e subir em busca de espaço, como um rio que nasce.

Fechou os olhos tentando adiantar-se à agonia do momento, mas o fato de sabê-la ali ao lado e dele separada por imperativos categóricos de suas vidas, não lhe dava forças para desprender-se dela. Sabia que era aquela a sua amada, por quem esperara desde sempre e que por muitos anos buscara em cada mulher, na mais terrível e dolorosa busca. Sabia, também, que o primeiro passo que desse colocaria em movimento sua máquina de viver e ele teria, mesmo como um autômato, de sair, andar, fazer coisas, distanciar-se dela cada vez mais, cada vez mais. E no entanto ali estava, a poucos passos, sua forma feminina que não era nenhuma outra forma feminina, mas a dela, a mulher amada, aquela que ele abençoara com os seus beijos e agasalhara nos instantes de amor de seus corpos. Tentou imaginá-la em sua dolorosa nudez, já envolta em seu espaço próprio, perdida em suas cogitações próprias – um ser desligado dele pelo limite existente entre todas as coisas criadas.

De súbito, sentindo que ia explodir em lágrimas, correu para a rua e pôs-se a andar sem saber para onde...

Essa crônica foi extraída da obra Para Viver um Grande Amor - Crônicas e Poemas, que fez parte da Coleção Folha - Grandes Escritores Brasileiros, publicada em 2008

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Pomo

por César Magalhães Borges

A inocência será
a meta final
da civilização

Setas arremessadas
a um alvo
cada vez maior:
tudo será alvo
para que se acerte

amor
sem a previsão de
lucro

lucro
que não cave
a desvalia
e distribua
a cada um
o bem

o bem-estar
sedimentado
após a saturação
do mal

bem constante
seguindo a cadência
candura
e sabor
da eternidade

as diferenças contempladas
pela beleza,
curiosidade,
inteligência,
respeito,
carinho
e generosidade:
terra sem fronteiras

E quem chamar
a tudo isso
de utopia,
será acusado
de falta de inocência
e condenado a cumprir pena
no jardim da infância
e das delícias
até ter brincado
em todos os brinquedos,
rodas
e cantigas

a humanidade adulta
perseguindo a perfeição
da inocência absoluta

círculo que se completa:
sangue que corre
pelo cordão umbilical:
rebentos da mais pura vida.

Esse poema foi extraído do livro Folhas Soltas (poesia incidental), uma edição independente de 2006 e o quarto livro de poemas de César Magalhães Borges, que também produz obras de literatura infantil e transita, com muita propriedade, no universo das crônicas, contos, roteiros para teatro e canções. Vale observar que o blog não permite dispor os versos como o autor os concebeu, mas creio que sua essência está registrada aqui.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

O habilidoso Perna Curta

por Wagner Hilário

– Separa a gelada que tô na seca, Matias! – gritou de longe, Tininho, com seus um e sessenta e cinco de altura, embrulhados numa morenice cobre, curtida pelos anos, mais de cinquenta, nariz empinado, olhar malandro, tronco robusto, barrigudo, pernas curtas e mancas.

Dirigia-se ao bar do Mamá, contíguo ao Campo do 13, onde passava o domingo acompanhado dos amigos e das cervejas, cujo prazer desfrutava lenta e pacientemente, sóbrio o suficiente para contar as suas histórias impagáveis, de veracidade questionável, e assistir às peladas no campo de terra batida.

– Vamos ver se a molecada do Cortiço ganha hoje, né, Matias? Semana passada foi feio – observou, antes mesmo de sentar-se à mesa de ferro que estampava a marca da gelada que ele não toma... “Dá dor de cabeça.”

– Fala, Perna Curta, qual é o causo de hoje? – disse o jovem centroavante do Cortiço, com ar de deboche.

– Cê sabe que nos meus causo cê não entra, né, Ari? Só entra boleiro de verdade – retrucou Tininho.

A molecada do Cortiço, que àquela hora já se espalhava pelas mesas do bar, riu da tirada. Ari esboçou resposta, mas o cortaram.

– Quieto, que cê foi zuado – gritaram.

– Eu já contei que fiz dupla de ataque com o Cláudio Adão? – atiçou-os, Tininho. – Serei breve. Já passou das nove. – O Cortiço jogaria às dez.

Pegos pela promessa de mais um episódio da trajetória futebolística de Perna Curta, a molecada largou a sinuca e parou para escutá-lo, como sempre.

Os mais velhos conheciam-no há mais de vinte e cinco anos, quando se mudou para o bairro já com o joelho esquerdo bichado, sem poder jogar. Habituaram-se às suas histórias. Duvidavam que fossem verdades (ninguém nunca o vira chutar uma bola), mas preferiam não descobrir. “O cara é boa gente, sempre racha a cerveja.” Agora, diante dos jovens, os antigos, como Ticão, técnico do Cortiço, faziam-se de testemunhas dos feitos dele.

– O Adão tinha quando muito uns quinze anos; eu vinte. Jogávamos pelo Estrela da Vila Maria contra o Negritude da Vila Matilde. A negrada marcava! Nem eu nem o Adão tínhamos feito nada até os quarenta e dois do segundo. O jogo estava zero a zero, quando num vacilo do volante deles, deixou a bola passar, dei um tapa embaixo da criança e chapelei o zagueiro. O Adão me mirou com os olhão esbugalhado, correu pela frente do central. Empurrei a princesa pra ele que sentiu o goleiro um pouco adiantado. Da meia lua, tocou fácil de canhota por cima. Ela entrou rente ao travessão e à mão do goleiro.

Os ouvintes se imaginavam na jogada. Na mente, para enfeitar, gramavam o Campo do 13 e enchiam as laterais de arquibancadas e torcedores. Até que a voz ressentida de Ari, em virtude da tirada que lhe dera Tininho no início da conversa, findou o transe.

– Aí, Perna Curta! Cê é mó cascateiro. O Adão é carioca, nunca ia vir jogá no Estrela aos quinze anos. Mentiroso!

Tininho lançou-lhe um olhar de desprezo. Inabalável, mirou os presentes: constrangidos, como se uma verdade indesejada acabasse de vir à tona. Lambeu os beiços.

– Ceis preferem os meus causo, ou a grosseria desse perna-de-pau?

Olharam-se. Ticão, negro como carvão e alto, uma autoridade, censurou Ari com os olhos e disse:

– Tininho, conta a que cê deixou o Luiz Pereira sentado aquela vez.

Perna Curta contou, habilidoso, como sempre.

Inspirado em textos e personagens de Ariano Suassuna

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

As novas eras

por Bertolt Brecht

As novas eras não começam de uma vez:
meu avô vivia no novo tempo,
meu neto viverá talvez ainda no velho.

A nova carne é comida com os velhos garfos.

Os carros automotores não havia
nem os tanques.
Os aeroplanos sobre nossos tetos não havia
nem os bombardeiros.

Das novas antenas vêm as velhas tolices.
A sabedoria é transmitida de boca em boca.

Esse texto foi extraído da obra Bertolt Brecht – Poemas 1913-1956, publicada pela Editora 34, em 2001, e fruto da seleção e tradução de poemas do autor alemão feitas por Paulo César de Souza.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Para lembrar de viver

por Wagner Hilário

As netas, os netos, todos traziam um traço, todos eram, de alguma forma, imagem e semelhança dela. As ruas latiam de saudade, e o céu violeta da tarde trazia a noite, que, quente ou fria, a partir daquele fatídico dia, seria um pouco mais solitária. A televisão era moderna, quadro de pixels, mas não lhe fazia mais colorido e nítido o hoje do que fora o ontem. Só agora percebia que não se lembrava de ter vivido sem ela.

Era o primeiro dia sem sua mão enrugada e gelada de lavar as verduras para o almoço; o primeiro dia sem ouvir as reclamações sobre as migalhas de pão espalhadas pelo chão da sala, onde lugar de comer era na cozinha; o primeiro dia sem gritar para que ela se calasse e o deixasse ouvir o noticiário esportivo no antiquado rádio-relógio.

Quando o caixão mergulhou na sepultura, ele não chorou. A companhia dos parentes afastava as lágrimas do viúvo. Até gostaria de mostrar a todos que sentia na alma a dor da partida, mas por motivo desconhecido, perdido na infância, não conseguia. O fato era que o destino havia lhe amputado metade da vida, a seco. É sempre assim, com qualquer um; não tinha privilégios.

Agora, queria ninguém em casa, fazendo-lhe companhia. Queria encontrá-la na ausência dos cômodos, amar-lhe a saudade como a amara sem nunca saber demonstrar em outro lugar que não fosse a cama – ao menos nisso acreditava. Queria que ela fosse o sempre, velha ou nova, não importava, desde que fosse ela. Só agora notava...

Só agora notava que não havia ninguém para lhe dizer o que trazer do “mercado”.

Os papéis na escrivaninha da antiga despensa, há alguns anos transformada em “sala de tricô”, estavam em branco, simetricamente empilhados – migalhas do seu jeito de viver. Quantas vezes não foi às compras, acompanhado dela em forma de letras, a eterna muleta de sua memória, distraída a tudo que não fosse para seu prazer abstrato, distraída a tudo o que fosse prático, necessário, comezinho. O dia-a-dia era trabalho da esposa.

Sentou na cadeira em que ela costumava sentar para escrever as listas de compra e derramou duas tímidas lágrimas. Respirou fundo a coriza de tristeza e tossiu para evitar que ela enodasse ainda mais sua garganta. Reclinou-se na cadeira em direção à escrivaninha, pegou um lápis, o lápis dela, e fez a lista de compra que, naquele dia, se ali estivesse, ela faria.

Enxugou o rosto, com a velha mão cheia de calo, e partiu para o supermercado, com a vida anotada no papel, e o espírito perdido no passado.


Esse texto foi primeiramente publicado na revista SuperHiper, veículo da Associação Brasileira de Supermercados (Abras), em setembro de 2008.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Elogio do esquecimento

por Bertolt Brecht

Bom é o esquecimento!
Senão como se afastaria o filho
da mãe que o amamentou?
Que lhe deu a força dos membros
e o impede de experimentá-la.

Ou como deixaria o aluno
o professor que lhe deu o saber?
Quando o saber está dado
o aluno tem de se pôr a caminho.

Para a velha casa
mudam-se os novos moradores.
Se os que a construíram ainda lá vivessem
a casa seria pequena demais.

O forno esquenta. Já não se sabe
quem foi o oleiro. O plantador
não reconhece o pão.

Como se levantaria pela manhã o homem
sem o deslembrar da noite que desfaz o rastro?
Como se ergueria pela sétima vez
aquele derrubado seis vezes
para lavrar o chão pedregoso, voar
o céu perigoso?

A fraqueza da memória
dá força ao homem.

Esse texto foi extraído da obra Bertolt Brecht – Poemas 1913-1956, publicada pela Editora 34, em 2001, e fruto da seleção e tradução de poemas do autor alemão feitas por Paulo César de Souza.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

A Carta


O texto abaixo é a carta escrita pelo líder indígena, Chefe Seattle, por volta de 1852 ao presidente norte-americano, à época provavelmente Millard Fillmore, em resposta ao pedido do governo dos Estados Unidos de compra de suas terras. A intenção do governo era dispor de terra para abrigar os imigrantes que vinham da Europa. A carta foi extraída do endereço http://www.culturabrasil.pro.br/campbell.htm, no qual está transcrita a entrevista feita pelo jornalista Bill Moyers com o mitólogo Joseph Campbell, que cita a carta do Chefe Seattle como “um dos últimos testemunhos da ordem moral paleolítica”.



por Chefe Seattle

O Presidente, em Washington, informa que deseja comprar nossa terra. Mas como é possível comprar ou vender o céu, ou a terra? A ideia nos é estranha. Se não possuímos o frescor do ar e a vivacidade da água, como vocês poderão comprá-los?

Cada parte desta terra é sagrada para meu povo. Cada arbusto brilhante do pinheiro, cada porção de praia, cada bruma na floresta escura, cada campina, cada inseto que zune. Todos são sagrados na memória e na experiência do meu povo.

Conhecemos a seiva que circula nas árvores, como conhecemos o sangue que circula em nossas veias. Somos parte da terra, e ela é parte de nós. As flores perfumadas são nossas irmãs. O urso, o gamo e a grande águia são nossos irmãos. O topo das montanhas, o húmus das campinas, o calor do corpo do pônei, e o homem, pertencem todos à mesma família.

A água brilhante que se move nos rios e riachos não é apenas água, mas o sangue de nossos ancestrais. Se lhes vendermos nossa terra, vocês deverão lembrar-se de que ela é sagrada. Cada reflexo espectral nas claras águas dos lagos fala de eventos e memórias na vida do meu povo. O murmúrio da água é a voz do pai do meu pai.

Os rios são nossos irmãos. Eles saciam nossa sede, conduzem nossas canoas e alimentam nossos filhos. Assim, é preciso dedicar aos rios a mesma bondade que se dedicaria a um irmão.

Se lhes vendermos nossa terra, lembrem-se de que o ar é precioso para nós, o ar partilha seu espírito com toda a vida que ampara. O vento, que deu ao nosso avô seu primeiro alento, também recebe seu último suspiro. O vento também dá às nossas crianças o espírito da vida. Assim, se lhes vendermos nossa terra, vocês deverão mantê-la à parte e sagrada, como um lugar onde o homem possa ir apreciar o vento, adocicado pelas flores da campina.

Ensinarão vocês às suas crianças o que ensinamos às nossas? Que a terra é nossa mãe? O que acontece à terra acontece a todos os filhos da terra.

O que sabemos é isto: a terra não pertence ao homem, o homem pertence à terra. Todas as coisas estão ligadas, assim como o sangue nos une a todos. O homem não teceu a rede da vida, é apenas um dos fios dela. O que quer que ele faça à rede, fará a si mesmo.

Uma coisa sabemos: nosso deus é também o seu deus. A terra é preciosa para ele e magoá-la é acumular contrariedades sobre o seu criador.

O destino de vocês é um mistério para nós. O que acontecerá quando os búfalos forem todos sacrificados? Os cavalos selvagens, todos domados? O que acontecerá quando os cantos secretos da floresta forem ocupados pelo odor de muitos homens e a vista dos montes floridos for bloqueada pelos fios que falam? Onde estarão as matas? Sumiram! Onde estará a águia? Desapareceu! E o que será dizer adeus ao pônei arisco e à caça? Será o fim da vida e o início da sobrevivência.

Quando o último pele vermelha desaparecer, junto com sua vastidão selvagem, e a sua memória for apenas a sombra de uma nuvem se movendo sobre a planície... estas praias e estas florestas ainda estarão aí? Alguma coisa do espírito do meu povo ainda restará?

Amamos esta terra como o recém-nascido ama as batidas do coração da mãe. Assim, se lhes vendermos nossa terra, amem-na como a temos amado. Cuidem dela como temos cuidado. Gravem em suas mentes a memória da terra tal como estiver quando a receberem. Preservem a terra para todas as crianças e amem-na, como Deus nos ama a todos.

Assim como somos parte da terra, vocês também são parte da terra. Esta terra é preciosa para nós, também é preciosa para vocês. Uma coisa sabemos: existe apenas um Deus. Nenhum homem, vermelho ou branco, pode viver à parte. Afinal, somos irmãos.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Yin e Yang

por Wagner Hilário

Poente púrpura
e laranja lava:
horizonte
rajado de Deus.

O céu se pinta
feito gueixa
pouco antes de se deitar.
Olhar pueril:
“O sol acendeu,
papai”.

Num dia-nuvens,
uma fresta
no pé oceânico
do firmamento
faz poesia se precipitar.

O encontro da luz
com as trevas:
fio de contrastes
sobre o qual
se deve equilibrar.

Máquina digital,
uma foto sem flash
para roubar a alma
deste instante-lugar.









segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

O retrato do carroceiro

por Wagner Hilário

A carne daquele carroceiro parecia pedra. Seus olhos não viam, miravam. A barba rala, rente, não tinha força para ir além, o que lhe conferia um asseio sem esforço. Com as costas apoiadas no muro, mastigava o caule de uma erva daninha tirada de uma rachadura na calçada. Forte, parecia deixar a carroça cheia de papelão descansar por alguns minutos, enquanto se dedicava a um misterioso trabalho intelectual.

Eu quis fotografar essa ideia. Desembainhei a máquina e disparei, sem fleche, aproveitando o quanto podia a luz frágil da tarde cinza. A imagem parecia feita de pó; um sutil chuviscado lhe dava um charme imperfeito. As cores eram discretas, como as roupas rotas daquele homem moreno feito terra fértil...

– Vai me expor sem pedir autorização?

As palavras do homem me agrilhoaram e antes que eu pudesse responder...

– O artista se julga sensível, mas sua sensibilidade raramente é altruísta. Quer realizar sua obra e colher as glórias que ela trará. Depois disso, os olhos do artista viram olhos da massa: o mendigo carroceiro ali exposto vira estorvo, vira cisco no olho.

Fez uma pausa para eu refletir sobre suas palavras, como se tivesse enfiado uma faca em meu ventre e a segurasse por alguns instantes para eu sentir ao máximo a chama da lâmina.

– Durante a mostra, os apreciadores se deleitarão com o seu talento, que conferirá à minha miséria uma riqueza redentora. Alguns talvez se comovam, sintam as carências do retratado, mas mesmo esses se esquecerão, pois não há nada que um bom vinho depois da exposição não cure... Não é o luxo que é um porre; é o porre que é um luxo.

– Que raio de gente é o senhor?

– O raio de gente que ninguém quer ser... Embora todos se queixem da opressão do mundo, ninguém quer ser o que defende. Queixam-se da boca pra fora. Ninguém tem coragem de encarar as conseqüências... Sou um carroceiro.

– O senhor fala bem demais pra um carroceiro. Parece um profeta.

– Não sou profeta... Mas a minha verdade o amedronta.

– Que verdade?

– Vivo como acredito ser necessário. E acredito no que escreveu Fernando Pessoa: “A vida é breve, a alma é vasta: ter é tardar”. No que escreveu Sêneca: “Não temos de nos preocupar em viver longos anos, mas em vivê-los satisfatoriamente; porque viver longo tempo depende do destino, viver satisfatoriamente depende de tua alma”. Isso significa que vivo da providência porque quero que a notoriedade dos homens vá à puta que pariu.

– Notoriedade?

– Exatamente... O mesmo que você procura com suas fotos.

– E o que você procura com essa ladainha?

– Boa pergunta – um riso debochado lhe brotou na cara, mostrando os dentes sujos e encavalados.

Se a princípio me espantei com a reação do carroceiro, que imaginava ser um sujeito mais
simpático, agora tinha raiva dele, do seu conhecimento.

– O que fazia da vida antes de virar carroceiro?

– Nada de útil, ao menos nada de que me possa orgulhar. Papariquei muito imbecil egocêntrico, sedento por um reconhecimento oco. Queria eu também esse oco reconhecimento, até que não vi mais razão para tê-lo. Até que decidi dizer a eles exatamente o que lhe digo agora, até que não mais me queriam em canto algum, não mais me queriam em casa, não mais me queriam no trabalho. E sem trabalho, sem casa, sem dinheiro, não me restava outra opção a não ser viver das sobras dos notórios homens. Não me restava outra opção senão a minha crença, a minha certeza de que sua glória não vale um peido pra Deus.

– E o que vale pra Ele então?

– Talvez não valha a pena dizer.

– Como não?

– É uma palavra que hoje em dia todos usam como enfeite de retórica.

– Diga logo.

– Amor.

– O senhor é um profeta, definitivamente – disse-lhe sem esconder o desprezo pelo que ouvia.

– Não há nada de amor na ambição. Ninguém ama o poder nem o dinheiro nem a fama. Essas
coisas você não ama, você ambiciona, você as busca para ocultar alguma culpa, alguma falha de caráter, alguma fraqueza que o fez ser malvisto pela sociedade ou por você mesmo. Algo que lhe trouxe alguma espécie de trauma não sublimado.

– E o que sublima um trauma?

– O amor.

– Eu amo fotografar, amo as fotos que faço.

– Então isso deveria lhe bastar.

– Devo guardar as minhas fotos numa gaveta?

– Não disse isso. Disse que os aplausos não podem valer mais do que suas fotos; as pessoas que as aplaudem não podem valer mais do que as que são fotografadas.

Ficamos em silêncio por alguns instantes, ele olhando a carroça e mastigando a ponta da erva daninha. Eu olhando em seus olhos. Até que se levantou, pegou a carroça e a saiu puxando pela rua, sem dar a mínima aos carros, cujos motoristas reclamavam do espaço que o carroceiro ocupava na via.

– Péra aí! Como se chama? – gritei.

Não disse. Sem olhar pra trás, fez com a mão esquerda um movimento de “pouco importa” no vento, enquanto puxava a carroça com a mão direita.