segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

O habilidoso Perna Curta

por Wagner Hilário

– Separa a gelada que tô na seca, Matias! – gritou de longe, Tininho, com seus um e sessenta e cinco de altura, embrulhados numa morenice cobre, curtida pelos anos, mais de cinquenta, nariz empinado, olhar malandro, tronco robusto, barrigudo, pernas curtas e mancas.

Dirigia-se ao bar do Mamá, contíguo ao Campo do 13, onde passava o domingo acompanhado dos amigos e das cervejas, cujo prazer desfrutava lenta e pacientemente, sóbrio o suficiente para contar as suas histórias impagáveis, de veracidade questionável, e assistir às peladas no campo de terra batida.

– Vamos ver se a molecada do Cortiço ganha hoje, né, Matias? Semana passada foi feio – observou, antes mesmo de sentar-se à mesa de ferro que estampava a marca da gelada que ele não toma... “Dá dor de cabeça.”

– Fala, Perna Curta, qual é o causo de hoje? – disse o jovem centroavante do Cortiço, com ar de deboche.

– Cê sabe que nos meus causo cê não entra, né, Ari? Só entra boleiro de verdade – retrucou Tininho.

A molecada do Cortiço, que àquela hora já se espalhava pelas mesas do bar, riu da tirada. Ari esboçou resposta, mas o cortaram.

– Quieto, que cê foi zuado – gritaram.

– Eu já contei que fiz dupla de ataque com o Cláudio Adão? – atiçou-os, Tininho. – Serei breve. Já passou das nove. – O Cortiço jogaria às dez.

Pegos pela promessa de mais um episódio da trajetória futebolística de Perna Curta, a molecada largou a sinuca e parou para escutá-lo, como sempre.

Os mais velhos conheciam-no há mais de vinte e cinco anos, quando se mudou para o bairro já com o joelho esquerdo bichado, sem poder jogar. Habituaram-se às suas histórias. Duvidavam que fossem verdades (ninguém nunca o vira chutar uma bola), mas preferiam não descobrir. “O cara é boa gente, sempre racha a cerveja.” Agora, diante dos jovens, os antigos, como Ticão, técnico do Cortiço, faziam-se de testemunhas dos feitos dele.

– O Adão tinha quando muito uns quinze anos; eu vinte. Jogávamos pelo Estrela da Vila Maria contra o Negritude da Vila Matilde. A negrada marcava! Nem eu nem o Adão tínhamos feito nada até os quarenta e dois do segundo. O jogo estava zero a zero, quando num vacilo do volante deles, deixou a bola passar, dei um tapa embaixo da criança e chapelei o zagueiro. O Adão me mirou com os olhão esbugalhado, correu pela frente do central. Empurrei a princesa pra ele que sentiu o goleiro um pouco adiantado. Da meia lua, tocou fácil de canhota por cima. Ela entrou rente ao travessão e à mão do goleiro.

Os ouvintes se imaginavam na jogada. Na mente, para enfeitar, gramavam o Campo do 13 e enchiam as laterais de arquibancadas e torcedores. Até que a voz ressentida de Ari, em virtude da tirada que lhe dera Tininho no início da conversa, findou o transe.

– Aí, Perna Curta! Cê é mó cascateiro. O Adão é carioca, nunca ia vir jogá no Estrela aos quinze anos. Mentiroso!

Tininho lançou-lhe um olhar de desprezo. Inabalável, mirou os presentes: constrangidos, como se uma verdade indesejada acabasse de vir à tona. Lambeu os beiços.

– Ceis preferem os meus causo, ou a grosseria desse perna-de-pau?

Olharam-se. Ticão, negro como carvão e alto, uma autoridade, censurou Ari com os olhos e disse:

– Tininho, conta a que cê deixou o Luiz Pereira sentado aquela vez.

Perna Curta contou, habilidoso, como sempre.

Inspirado em textos e personagens de Ariano Suassuna

Um comentário:

Anônimo disse...

Wagníssimo!
Não me ligo em futebol, só na Copa do Mundo, mas adorei o jeito deste texto! Muito bom, como sempre,
beijos
Lígia