quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Para lembrar de viver

por Wagner Hilário

As netas, os netos, todos traziam um traço, todos eram, de alguma forma, imagem e semelhança dela. As ruas latiam de saudade, e o céu violeta da tarde trazia a noite, que, quente ou fria, a partir daquele fatídico dia, seria um pouco mais solitária. A televisão era moderna, quadro de pixels, mas não lhe fazia mais colorido e nítido o hoje do que fora o ontem. Só agora percebia que não se lembrava de ter vivido sem ela.

Era o primeiro dia sem sua mão enrugada e gelada de lavar as verduras para o almoço; o primeiro dia sem ouvir as reclamações sobre as migalhas de pão espalhadas pelo chão da sala, onde lugar de comer era na cozinha; o primeiro dia sem gritar para que ela se calasse e o deixasse ouvir o noticiário esportivo no antiquado rádio-relógio.

Quando o caixão mergulhou na sepultura, ele não chorou. A companhia dos parentes afastava as lágrimas do viúvo. Até gostaria de mostrar a todos que sentia na alma a dor da partida, mas por motivo desconhecido, perdido na infância, não conseguia. O fato era que o destino havia lhe amputado metade da vida, a seco. É sempre assim, com qualquer um; não tinha privilégios.

Agora, queria ninguém em casa, fazendo-lhe companhia. Queria encontrá-la na ausência dos cômodos, amar-lhe a saudade como a amara sem nunca saber demonstrar em outro lugar que não fosse a cama – ao menos nisso acreditava. Queria que ela fosse o sempre, velha ou nova, não importava, desde que fosse ela. Só agora notava...

Só agora notava que não havia ninguém para lhe dizer o que trazer do “mercado”.

Os papéis na escrivaninha da antiga despensa, há alguns anos transformada em “sala de tricô”, estavam em branco, simetricamente empilhados – migalhas do seu jeito de viver. Quantas vezes não foi às compras, acompanhado dela em forma de letras, a eterna muleta de sua memória, distraída a tudo que não fosse para seu prazer abstrato, distraída a tudo o que fosse prático, necessário, comezinho. O dia-a-dia era trabalho da esposa.

Sentou na cadeira em que ela costumava sentar para escrever as listas de compra e derramou duas tímidas lágrimas. Respirou fundo a coriza de tristeza e tossiu para evitar que ela enodasse ainda mais sua garganta. Reclinou-se na cadeira em direção à escrivaninha, pegou um lápis, o lápis dela, e fez a lista de compra que, naquele dia, se ali estivesse, ela faria.

Enxugou o rosto, com a velha mão cheia de calo, e partiu para o supermercado, com a vida anotada no papel, e o espírito perdido no passado.


Esse texto foi primeiramente publicado na revista SuperHiper, veículo da Associação Brasileira de Supermercados (Abras), em setembro de 2008.

2 comentários:

Felipe R.Torres Modenese disse...

Wagner, curti bastante a forma que deu ao vazio... de contornos sutis.
Abraço

Anônimo disse...

Querido Wagner

Texto lindo, quase chorei... e escrito com primor, sem pieguice.
Parabéns mais uma vez.
Beijos
Lígia