quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

O Possuído

por Wagner Hilário

Aos olhos da maioria, e também aos olhos de muitos dos seus entes nem tão queridos assim, Zé é um Zé Ninguém. Não preside nenhuma multinacional, não enriqueceu nem por bem nem por mal e tão-pouco foi um famoso jogador de futebol antes de se entregar ao vício. Se o tivesse feito, sua história talvez fosse outra: a beberrice lhe seria perdoada e encontrariam em sua infância uma razão para o adulto irresponsável que se tornara. O fato é que trabalha como vendedor de imóveis quase a vida toda numa imobiliária vagabunda, mais para pagar a birita do fim do dia do que para pagar o aluguel; mais para desfrutar da companhia dos amigos etílicos do que para assegurar as três refeições diárias.

– Que história tem esse pra contar? É um zero à esquerda – diziam os últimos exemplares de uma espécie humana em extinção: as senhoras-do-parapeito.

Mas ele não pensa assim, é óbvio. Não chega a se orgulhar da vida que leva, mas vê nela algo bíblico, talvez pelas precárias e questionáveis associações que faz entre as parábolas da Sagrada Escritura e sua conduta... Mas que diabo é isso? – você deve se perguntar. O cachaceiro lê a Bíblia? Sim. Lê e acredita piamente em tudo o que está escrito. Fazer o que manda o texto são outros quinhentos, mas cobrar dos outros, é com ele mesmo. Serviria para eclesiástico. Seria, no entanto, incapaz de cometer alguns tipos de pecados, como usar a Bíblia para engabelar a boa-fé das pessoas. Aliás, esse pecado é o que mais o incomoda.

Por isso, de uma passagem, não da Bíblia, mas de sua própria vida, ele se orgulha mais. Em seu repertório de histórias, das quais em regra ele é o herói, esta é uma das poucas verdadeiras, mesmo que isso pouco importe. Afinal, em balcão de bar a veracidade dos causos não significa nada se comparada com a excitação que proporcionam.

Num dia modorrento, em que o sol mais que aquece, derrete até telhado de templos, Zé voltava da imobiliária com o saco na lua da ociosidade que lhe tomara o dia todo. “A crise, a crise, a crise... Vou tomar uma.” Pra quem gosta, qualquer desculpa vale, imagine o estouro dos derivativos. Parou primeiro no boteco que ficava em frente à imobiliária, tomou uma com limão e depois emendou uma cervejinha pra balancear. Com as bochechas vermelhas de alegria e a boca cheia de coragem, seguiu a noite (que ainda era dia por causa do horário de verão), disposto a parar no bar que ficava a um quarteirão de seu apê.

A poucos metros do bar, porém, Zé ouviu a voz de Deus (nesse ponto, eu acredito que haja um pouco de ficção no relato do herói, que aqui replico à minha maneira) vir de uma dessas franquias da fé, que trazem na fachada nomes grandiosos, etéreos, e que trazem dentro louvações, exorcismos e aparelhos que aceitam cartões de crédito e débito das mais diversas bandeiras. Zé sabia que ali dentro ele tinha uma missão a cumprir. Iluminado pelo álcool, entrou no templo.

Chegou bem na hora do exorcismo, sentou-se em um dos poucos assentos vazios e ficou observando. Era uma moça, sacolejava sob a influência do demo; revirava o zoio; difamava o público; alguns se horrorizavam com os impropérios, outros vestiam a carapuça e uns reconheciam que o espírito não dizia nada com nada. Mas isso durou apenas alguns segundos, embora parecesse uma eternidade aos presentes. Durou até que a mão milagrosa do pastor finalmente arrebatou o infeliz do corpo da jovem.

A moça, amparada por seu “salvador”, foi levada até os assentos da frente, a no máximo dois metros de Zé, que pensou: “vou ficar de olho nela”. Foram mais de dois minutos fitando-a sem pestanejar (exagero concedido ao herói). Nesse meio-tempo (ele garante) ela percebeu que era observada e olhou umas cinco vezes para ele completamente sem graça, cara de quem foi pega com a boca na botija.

– Alguém que recebe o coisa-ruim não recupera assim, né não? – contava-nos, cheio de razão.

– Não tem como! – respondíamos, catedráticos no assunto.

Mas ele ainda não havia realizado o grande feito. Voltemos ao templo...

Convencido de que a moça era mais atriz do que crente, voltou sua zonza atenção para o discurso do pastor:

– Porque essa dor, senhores, esse diabo, que com muito custo a gente arranca das pessoas de bem como essa moça, é o responsável pelas maldades do mundo, pelas maldades que cometemos ao longo do caminho, quando estamos distantes de Jesus e perto do mundo mundano... Eu mesmo já fiz muita coisa errada: já fui maconheiro, já fui drogado, já roubei, já passei droga... Mas hoje... hoje eu posso dizer que...

Antes que o pastor pudesse completar, Zé foi impelido por força maior, força que pode ser atribuída a uma porção de fatores, mas que na minha visão de narrador (embora pouco onisciente), veio da sua natureza destemperada e inconsequente. Ergueu-se em meio aos fiéis e disparou diante de uma plateia estupefata, incrédula depois e indignada mais tarde...

– Hoje, pastor, hoje o senhor é estelionatário.

As palavras lhe saíram tortas, como era de se esperar de um bêbado, mas a condição atlética demonstrada ao correr enviesado em meio aos fiéis deixando os seguranças para trás surpreendeu a ele próprio. Foi por pouco que ele escapou. Quando os seguranças se aproximavam, Zé alcançou o bar. Os brutamontes se intimidaram com a grande quantidade de beberrões no boteco. Acharam que não valia a pena entrar lá e causar tumulto maior. No íntimo, talvez até concordassem com o insulto do Zé.

Uns trinta minutos depois, quando conseguiu recobrar o fôlego, ele nos contou o que ocorrera. A princípio ficamos indignados. Pensamos em ir ao templo dar um jeito nos seguranças, mas ele nos convenceu que não era prudente. Tomamos mais umas; brindamos o Zé.

3 comentários:

Ana disse...

Wagner,

Sou fã de sua escrita, de seus textos desde a época da pós. Parabéns por mais este exuberante, delicado e sensível.

Ana Rego

Anônimo disse...

Me admira esta manifestação artística de uma situação cotidiana retratada, típica brasileira. Muito bom.

Duda Rangel disse...

Caro Wagner,
Aceitei o convite para ler este post e não me arrependi. Parabéns pela história. E obrigado, como sempre, pela visita ao meu blog! Grande abraço. Duda.