sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

O veludo dos sonhos

por Wagner Hilário

Dizem que quando era filhote, caiu da laje e bateu a cabeça. Sobreviveu por um milagre, mas houve sequelas: tornou-se epiléptico. Era um jovem hiperativo, corria enlouquecidamente atrás dos carros dos namorados de Leila. A moça não podia deixar o portão aberto nessas ocasiões. Ao ouvir a partida do carro, ele se pirulitava até onde o fôlego alcançasse. Ia longe, atrás do automóvel.

Quando Leila o escolheu, Tob batalhava contra os irmãos por uma das tetas da mãe. Leila não sabia da queda da laje. A não ser as orelhas endurecidas pros lados, em vez de pra cima, como uma asa-delta, não havia indícios da avaria.

Um vira-lata descendente de pastor. Adulto, era forte e maior do que a média dos cachorros sem raça. Era amarelo-ouro em quase toda a cara, na barriga, na parte posterior das costas e no rabo. No dorso, era levemente preto (se é que algo pode ser levemente preto).

Como costuma ocorrer, a menina escolheu o cão, mas seu pai, seu Lúcio, era quem cuidava, quem o alimentava. Tob então o escolheu para dono, somente a ele, mais ninguém. Mas a desobediência congênita, mais a epilepsia e a dermatite úmida (mais essa) somadas à impaciência de seu Lúcio entornaram o caldo daquele quase amor entre homem e bicho.

Seu Lúcio se estorvava com a história de ter de regular sua rotina com os horários dos remédios do cão e de limpar as fezes que impregnavam o azulejo claro do quintal. Gostava mesmo era de curtir a aposentadoria na frente da tevê. É verdade que dona Isadora o ajudava, mas nenhum dos dois dispunha de disposição pra levá-lo pra passear, pra dar carinho, atenção.

– Eu não, Leila – gritava seu Lúcio, menos por irritação do que pelos problemas de audição. – Cê é que tem de fazer isso. A sua mãe diz que eu maltrato o cachorro, mas ela não faz nada também, nem você. – Falava como raramente; era sujeito de poucas palavras. – Por que ocê não leva ele pra passear?

Leila levava no começo, mas depois que passou a estudar e trabalhar sacrificou o tempo de Tob. Seu Lúcio até tentou algumas vezes, mas apesar dos problemas, o cão era forte pra ele: qualquer cadela no cio no caminho era um enorme risco ao magro seu Lúcio.

Então, o alegre Tob da infância virou um adulto triste, embora jamais agressivo. Passava a maior parte do dia dentro da casinha. A vitalidade da juventude que o fazia subir as escadas do sobrado e saltar na cama de Leila logo pela manhã se esvaíra. A epilepsia tirava dele os reflexos. Corria desengonçado, sem aerodinâmica, apesar da asa-delta. Pior do que isso, só a dermatite: o fedor de pelo e couro molhado o afastava dos já escassos carinhos.

O tempo urgiu, e Leila de menina passou a moça universitária que passou a mulher mãe e esposa. Deixou a casa dos pais e o fedido Tob. O certo é que o cão tinha mais de dez anos quando sumiu da casa de seu Lúcio. Teve ainda a oportunidade de conhecer o filho de Leila, o único que àquela altura o acariciava, ao menos até algum adulto se dar conta da carinhosa peraltice e o afastar do mau cheiro e das chagas de Tob.

Numa das visitas de fim de semana à casa materna, Leila deu conta da ausência de Tob, o quintal não tinha merda alguma, nem urina e o cheiro de couro e pelo molhado tinham desaparecido.

– Mãe, cadê o Tob?

– Ah! Seu pai diz que ele fugiu. Como, eu não sei. Depois de velho, o Tob não saía da porta de casa. Impossível ter fugido. Tem gente na rua que viu seu pai colocar o bicho dentro do carro. Tem até gente que viu o cachorro lá pro lado do matagal. Fui atrás, mai nada.

– Ah, mãe! Não acredito nisso... Meu pai tentou tratá-lo de tudo quanto foi jeito, não faria isso – disse Leila ao marido, que olhava condoído o quintal... Lucas, o filho do casal, brincava no chiqueirinho.

Tob adorava passear de carro. Fazer com que entrasse no automóvel era fácil. Conhecia tão bem o barulho do carro que a um quarteirão de distância seria capaz de identificá-lo e latir pelo retorno do dono. Era arriscado acusar seu Lúcio, embora sua frieza dessa margem pros boatos da vizinhança. Não lamentava nem parecia feliz com o sumiço do cachorro. Fosse lá o que sentisse, sentia em silêncio.

O fato é que ninguém teve coragem de perguntar ao velho se ele havia ou não jogado o cachorro doente na rua.

Num Sábado de outono, no entanto, seu Lúcio acordou às seis da manhã, tomou banho, colocou a sua bota bege antiquada e manchada de tinta de parede, uma camisa quadriculada e uma calça jeans com as barras dobradas mostrando as canelas. Desceu, preparou o café e encheu as jarras. Na verde, café com açúcar; na vermelha, sem. Como sempre.

Pela porta da cozinha, a luz do sol recém-nascido passava brilhante, iluminando o cômodo. Seu Lúcio apanhou uma sacola de feira, onde colocava os pães e frios que comprava. Passou pela porta da cozinha e apontou no corredor que daria no portão. Banhado pela luz da manhã, ele divisou Tob correndo no corredor; o corpo coberto de um pelo lustroso, quase camurça, limpo e belo como nunca. Ele estava alegre, feito filhote...

Seu Lúcio abriu os olhos, com a voz alta que vinha do rádio-relógio marcando seis da manhã e o despertando do sono. Cumpriu o ritual diário: banho, roupas, café, padaria, mas agora sem encontrar Tob no quintal.

Mais tarde, à mesa:

– Tive um sonho bonito – disse a Isadora.

– Que sonho?

– Sonhei com Tob.

– É? E aí?

– Ele corria pelo quintal, aí no corredorzinho. Não parecia doente. O pelo era lindo e brilhava no sol. Eu nem queria acordar.

Sob o olhar desconfiado de Isadora, tomou um gole do café.

Nenhum comentário: