quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Ao pé do morro

por Wagner Hilário

Queiroz beijou o chão do pé daquele morro depois de um ano vivendo nele. Há um ano quebrara as algemas, livrara-se dos grilhões, cicatrizara as chagas dos pés e da alma; sua pele respirava aliviada bafejada pela sombra e o ar condicionado do supermercado em que trabalhava a salvo do sol do velho engenho. Há um ano, o pouco que ganhava era seu e servia pra pagar a ração da prole. Ano antes, a comida que fiava do Patrão valia mais que o suor fertilizante que derramava no solo. Veio do norte fugido, devendo o olho da cara.

Durante doze meses, tudo no barraco era riso, era novo. O povo do morro era tal e como: a maioria também vinda de cima, escapulida de uma afetuosa tirania patriarcal. Boa parte dos que miravam daquele mirante a imensidão azul do mar Atlântico à luz do dia, que viam o Cristo de costas, mas ainda assim a iluminar a tenebrosa noite de fogos da periferia sobranceira, era cria do Coronel. Queiroz não demorou a se sentir em casa, no lar que, de verdade, até então nunca tivera.

A princípio estranhou os meninos, alguns com a idade de seu filho mais velho, a empunhar metralhadoras mais pesadas que enxadas, carrinhos de mão, fardos de arroz e feijão; mas mais leves que canetas, livros e, quem sabe um dia, fardão. Depois passou a vê-los como anjos tortos, derribados do Céu pra cumprir o papel de salvá-lo dos representantes do Patrão. “Apesar de que”, ele se lembrava de ver amiúde no morro homens de gravata que lhes salvaguardavam o direito de viver ali, mesmo sendo “geologicamente perigoso”.

— Geô’quê, rapaz! N’ tem coisa mais perigosa que a fome, não. O resto é ficha — dizia Queiroz.

Belo dia, a noite se avizinhava, o sol se despedia laranja, feito lava, e nuvens carregadas de cinza e eletricidade brotavam no céu, que antes fora inteiro safírico. Antes de mergulhar por completo no mar, já não se podia mais ver o astro diurno. O turno de Queiroz não tinha acabado e ele lamentou o trânsito que seguramente se formaria após a tempestade, que mais tarde chamaria de dilúvio. Do alto, caíram todos os oceanos da terra, um marulhar ininterrupto de ondas, só surfadas pela morte.

Pegou o ônibus pra casa às 11 da noite, mas já antes se afligia com o celular impassível da esposa, o diz que me diz que do cobrador dando conta de enchentes intermináveis e de deslizamentos que levaram dos morros os homens e seus barracos... Deu vertigem quando viu a confusão de luzes intermitentes das equipes de resgate e salvamento, quando viu o espanto dos que regressavam a suas famílias, bichos de estimação e televisão, quando viu o pranto dos que só podiam esperar o pior, já que no morro não se podia mais divisar como antes o que era vértice, encosta e pé.

A procura foi intensa. Queiroz esperava, como que desperto de uma noite rica de sono. Combatia o desespero, apelava ao sentimento paternal do bombeiro, que lhe concedeu o direito de procurar junto. Queiroz procurou, procurou, procurou até sua fé também deslizar. Depois de um soluço pálido de resignação, põe-se de joelhos e beijou, saudoso e sovado, o chão do pé daquele morro.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Ela e o vento

por Wagner Hilário

Diante de si, caminhos em profusão e encruzilhadas, um zilhão de alternativas e no gibão um cantil macerado com água, ingerida economicamente a cada gole bem espaçado. Na beira das vias há de haver um pé de sei lá o quê que lhe sirva de sustento, instante de satisfação, pra se esquecer dos lamentos.

— Pr'onde ‘cê vai moça? — pergunta o vento.

— Pensei que soubesse, mas quando pisei no cascalho, esqueci ao certo.

— Então me deixa soprá’ seu rosto, pra vê’ se devolvo pro ‘cê a memória.

— Pó’ soprá’.

— Vvvvvvvvvvvvvvvvvvvvvvvv... Lembrou?

— Lembrei.

— Então pr'onde?

— Vou pr'onde o vento sopra minha memória.

— Então já não precisa í’. ‘Tô aqui... lhe ventando.

— Mas você nunca para, vento, anda todo tempo, ‘tá em todo canto. Preciso segui-lo.

— Se ‘tô em todo canto, pare num qualqué’, poupe seus pés e seu pranto e ouça meu canto que é tato... macio.

— Ma’ com’é que não pensei nisso antes.

— ‘Tava andando feito tonta, não parou pra pensar nem sentí’ que ninguém se perde na estrada sem antes se perdê’ de si.